CONTOS – A ironia do universo por Eloah Bezerra

CONTOS – A ironia do universo por Eloah Bezerra

— O que quer saber?

— Como vou morrer.

Respondi à suposta vidente, que, pelo que dizia os boatos, aterrorizava todos que entravam em sua tenda listrada, naquele parque que ia de cidade em cidade. Pelo menos foi o que disse minha amiga, que sentia medo dessas coisas. Então, entrei lá para provar a ela que era baboseira e que, provavelmente, a mulher pedia, para quem entrasse, que fingisse medo ao sair, apenas por efeito de piada.

— Avião — Ela me respondeu com um dar de ombros.

Eu soltei uma risada estupefata. Eu não tinha altas expectativas, mas só isso?

— Você é uma fraude mesmo – murmurei.

Levantei da cadeira com força e a empurrei, dei uma última olhada para a falsa vidente de cabelos ruivos iguais aos meus, mas com roupas largas estampadas. Empurrei bruscamente o pano da tenda, que servia como passagem, e isso fez minha amiga levar um susto:

— Como foi??

— Uma piada, Lana, como eu disse que ia ser.

Ela ficou aborrecida. Era aquele tipo de pessoa que acreditava em qualquer coisa de premonição, além de, obviamente, signos. Apesar do desânimo logo se animou quando fomos aos brinquedos.

Ao entardecer olhei para aquela tenda e senti um frio na barriga. Por causa disso, decidi então que nunca andaria de avião. Apesar de não ser o tipo de pessoa que acredita, sei como o mundo é brincalhão. Não seria eu a enfrentar a ironia do universo.

E seria fácil, eu mal viajava de avião.

Minha família tinha planejado uma viagem para o final do ano. Então, fingi estar doente. Eu já tinha 17 anos, meus pais se preocuparam, mas após eu insistir tanto para eles irem e aproveitar um tempo só deles, eles foram. E fiquei na casa da minha avó, o que os deixou despreocupados.

Não me arrependi. Ver a felicidade e a tranquilidade estampada no rosto dos meus pais me trouxe paz. Apesar de eu ter tomado vários chás horríveis quando não consegui jogar na pia.

No final do ano seguinte minha turma planejou a viagem do terceirão e, aquilo sim, fiquei triste por perder, mas eu me perguntava porque, após quase dois anos, eu ainda me lembrava da vidente e pensei que poderia ser um sinal. Talvez eu estivesse passando tempo demais com Lana.

Então, não fui. Não contei o motivo verdadeiro para ela, só disse que minha família estava passando por um momento apertado e, para minha família, disse que não queria ir.

Passaram-se anos até a próxima ocasião. Eu já estava no último ano da faculdade de Letras e uma banda que eu amava veio para o Brasil, mas claro, apenas no Rio de Janeiro e São Paulo, o que era algo bem prejudicial para alguém que nem no sudeste morava. Porém dessa vez eu fui. Foram 31 horas de viagem em uma van, mas assisti ao show.

 E foi um dos melhores momentos da minha vida, que guardaria no fundo da minha alma.

Apesar disso, o que me surpreendia era como eu ainda me lembrava…

Eu me casei, tive duas lindas filhas com meu marido e sempre fazíamos cruzeiro, apesar das queixas delas porque nunca viajamos de avião. E o motivo nem mesmo ele sabia, me sentia estúpida por acreditar, mas o olhar daquela vidente… Tanto faz, eu amava cruzeiro.

Contudo, o mundo estava muito diferente de antes.

Tomado pelos desastres naturais cada lugar tinha mais risco de se viver, em especial as cidades costeiras, como a que eu vivia. Várias pessoas foram levadas pela força aérea para lugares ao centro do país, quando havia risco de tsunami ou quando o nível do mar já impossibilitava de viver nesses lugares. Não só no Brasil, mas em todo o planeta, onde o pânico aumentava a cada dia, apesar dos governos e alguns jornais de notícia tentarem abafar a situação até ter um avião da força aérea te forçando a evacuar sua cidade.

E foi isso que aconteceu comigo.

Era um alerta de tsunami, então todos os bairros da costa foram evacuados.

O alarme tocou enquanto eu dava aula para minha classe do fundamental e o desespero se instaurou nos olhos de cada criança. Fui acalmando eles da melhor maneira e os direcionando. Porém, depois disso, demorou para os aviões chegarem e para todos se moverem até o aeroporto. Claro que as crianças foram primeiro.

Então, mais aviões foram chegando e em um deles tinha toda a minha família, menos meus netos. Então me acomodei, já aliviada, esperando as outras pessoas entrarem.

Eu nunca morei muito perto da praia, só que, com o aumento do nível do mar, estávamos quase lá. Logo, depois de tantos anos sem me preocupar com a possibilidade de viajar de avião eu estava sendo obrigada, então lembrei da vidente.

Nessa hora soube que ele iria cair, eu sentia. Minha amiga estava rindo no além mundo por eu acreditar nisso, após, alguns anos antes, ter morrido em um terremoto.

Pouco antes de fecharem as portas daquele imenso avião eu corri e apenas gritei uma desculpa para minha família.

Eles sobreviveriam e eu também.

Foi isso que pensei ao pegar o carro e a dirigir na maior velocidade, lutando contra o trânsito daqueles que corriam desesperadamente para o aeroporto.

Aquele tsunami foi devastador, um dos maiores já vistos.

Conforme a água se aproximava pensei o quanto eu era idiota. Poderia ter subido em um prédio, mas fiquei com medo dele desabar. Poderia ter seguido em frente e não ter tentando provar para minha amiga que aquela barraca era uma farsa. Eu poderia ter aproveitado minha vida. Até mesmo poderia ter perguntado o dia da minha morte e aproveitar e realizar tudo que poderia até lá.

Então, fui engolida pela onda.

Abri os olhos e na minha frente estava a vidente, perguntando:

— Tem certeza? — Com um sorriso malandro no rosto.

Eu estava trêmula. Em completo e silencioso choque, com a adrenalina da fuga do tsunami ainda em mim.

Então veio a fúria.

O que você fez comigo!? — Minha voz, trêmula.

— Só perguntei se você tinha certeza sobre o que quer saber. Talvez isso te torne uma pessoa paranoica pelo resto da vida.

Eu não acreditava naquilo que estava acontecendo. Não acreditava nas minhas roupas e na minha voz de adolescente. Mas ela entendia e se divertia com isso, com aquele sorriso de quem provou que não era uma fraude.

— Eu não entrei no avião!! — Esbravejei, com raiva pela minha morte, mas sem entender meu coração que ainda batia. Com raiva pela minha vida perdida, pela minha família que tanto amava.

Ela sorriu ainda mais, então se levantou ao sussurrar:

— Quem disse que você tinha que entrar no avião? O medo de avião foi sua estupidez pela vida inteira, tolinha.

— Eu, eu…

Perdi as palavras, mal conseguia continuar em pé e fui indo para trás, com o corpo inteiro trêmulo, acompanhado de lágrimas em meu rosto e com 53 anos vividos em um corpo de 17 anos, com uma vida inteira pela frente, a qual eu já tinha vivido.

Por ELOAH BEZERRA

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Pular para o conteúdo