A Prosa Poética

A Prosa Poética

 Escrever prosa poética é um desafio aos prosadores e poetas, pois conciliar prosa e verso nem sempre é uma tarefa fácil. Clarice Lispector, a autora brasileira mais traduzida no exterior, foi uma exímia prosadora que soprou, quase que cirurgicamente, características poéticas às suas criações. Eu costumo dizer que ser mulher é um ato de coragem, e se reconhecer como tal, é para poucas. A dona Lispector se reconhecia e, sendo mais poesia que mulher, trouxe para a sua arte a essência inegável do seu ser admirável.
 Ao escrever uma prosa poética, o artista das letras precisará se inteirar acerca dos elementos que compõem o gênero literário poesia e somente depois poderá escrever com propriedade uma prosa que se encaixe no entremeio da construção prosaica embebida na lira ritmada, ou não, fica a critério de cada prosador agregar
rimas ao seu escrito.
 Levando em consideração que não temos o poema metrificado como padrão (soneto), a rima não é exigência na prosa poética. Entretanto, tornar o texto sonoro é um fator relevante visto que, cantada, a produção tende
a embalar com mais facilidade o leitor dado a sensibilidade do versejar. Figuras de linguagem tais como assonância e aliteração contribuem demasiado para o efeito musicalizado.
 Àqueles que não são achegados ao ritmo, que preferem algo mais conciso, há outras figuras que despertam o tracejo poético: analogia, antítese, comparação, eufemismo, gradação, hipérbole, ironia, metáfora, metonímia, personificação e sinestesia. É evidente que a língua portuguesa fornece vasta riqueza e a serve numa bandeja ao escritor. Poeta ou prosador que souber se ater ao seu florescer, garanto: não irá se arrepender! A arte de escrever dá sentido ao existir, possibilitando, assim, a proeza do viver.

 

Aventura

Clarice Lispector

Minhas intuições se tornam mais claras ao esforço de transpô-las em palavras. É neste sentido, pois, que escrever me é uma necessidade. De um lado, porque escrever é um modo de não mentir
o sentimento (a transfiguração involuntária da imaginação é apenas um modo de chegar); de outro
lado, escrevo pela incapacidade de entender, sem ser através do processo de escrever. Se tomo um ar
hermético, é que não só o principal é não mentir o sentimento como porque tenho incapacidade de
transpô-lo de um modo claro sem que o minta – mentir o pensamento seria tirar a única alegria de escrever. Assim, tantas vezes tomo um ar involuntariamente hermético, o que acho bem chato nos outros.
Depois da coisa escrita, eu poderia friamente torná-la mais clara? Mas é que sou obstinada. E por
outro lado, respeito uma certa clareza peculiar ao mistério natural, não substituível por clareza outra nenhuma. E também porque acredito que a coisa se esclarece sozinha com o tempo: assim como
num copo d’água, uma vez depositado no fundo o que quer que seja, a água fica clara. Se jamais a
água ficar limpa, pior para mim. Aceito o risco. Aceitei risco bem maior, como todo o mundo que
vive. E se aceito o risco não é por liberdade arbitrária ou inconsciência ou arrogância: a cada dia que
acordo, por hábito até, aceito o risco. Sempre tive um profundo senso de aventura, e a palavra profundo está aí querendo dizer inerente. Este senso de aventura é o que me dá o que tenho de aproximação mais isenta e real em relação a viver e, de cambulhada, a escrever.

Por JEANE TERTULIANO

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