COLUNA MYSTÉRIO RETRÔ – O fantasma do banheiro por Renato Dutra

COLUNA MYSTÉRIO RETRÔ – O fantasma do banheiro por Renato Dutra

Renato Dutra É um escritor precoce, agraciado com prêmios como A Estrela na Testa e o Beijinho da Professora. Mais tarde, ganhou Prêmios de maior repercussão como o Não se Atreva a Escrever Isso Novamente e Advertências. Atualmente, é membro ABERST, leciona língua portuguesa na maravilhosa cidade de São José dos Campos, organiza antologias e escreve histórias de terror e suspense.

 

O fantasma do banheiro

 

Para começar esta história, peço, antes de mais nada, que a leiam com muita atenção, pois a mente humana pode ser mais poderosa e perigosa do que imaginamos e a realidade pode não ser nada do que supomos. Agora, sem mais demora:

Certa vez, apareceu, lá pelas bandas de um calmo e pacato sítio, um indivíduo não muito alto, não muito magro, não muito cabeludo, não muito sóbrio, não muito cheiroso, mas muito — muito mesmo — esperto. O visitante, que tinha pela graça do batismo o nome de Antônio, fazia questão de ser chamado de Tonhão e pediu hospitalidade ao dono do sítio Bom fim (nome sugestivo, hein!).

O sitiante atendeu prontamente ao pedido do forasteiro, pois sua maior qualidade, assim como a de qualquer pessoa do interior, era justamente a hospitalidade. Ele ainda disse: “A terra num me nega nada, pur isso num tem pruquê negá arguma coisa pra arguém. Ocê pode passá aqui o tempo que ocê precisá”. Ah, se José pudesse prever as consequências dessas palavras!

O tempo passou. No começo, tudo ocorreu sem problema nenhum, por isso não vou gastar tempo descrevendo coisas fúteis e sem importância. Registrarei apenas que Tonhão tinha certa caída por cachaça, mas, para ele, isso não era um problema. O problema era para quem estava ao lado dele, que, como todo bêbado, tornava-se um chato e inconveniente. Isso, unido ao fato de ele ainda possuir completa aversão por serviços e já estar há quase dois meses usufruindo da boa vontade, comida, bebida e teto, fez com que José percebesse que seu hóspede era uma pessoa desprovida de responsabilidades sociais ou, em outras palavras, um completo vagabundo.

Quando José decidiu mandar seu hóspede embora por estar cansado de aturar aquele chupim, um fato novo surgiu no sítio e garantiu um tempo a mais de regalias para o ser desprovido de responsabilidade.

Durante a noite na qual José anunciou que Tonhão não era mais bem aceito no sítio e que, na manhã seguinte, deveria tomar seu rumo, um acontecimento assustou a todos e fez com que José se esquecesse totalmente de seu chupim graças ao medo. Após todas as luzes da casa terem sido apagadas e todos terem se dirigido as suas respectivas camas, a descarga do banheiro, que ficava do lado de fora da casa, começou a disparar, como se alguém a estivesse usando.

Mas quem, se todo mundo tá aqui dentro?, pensou a esposa de José.

Ela estava correta. Todos estavam dentro da casa, não sobrando ninguém para disparar a descarga.

José, que não era muito corajoso, disse:

—  Dexa cumigo! Amanhã memo eu discubro o qui é qui tá lá no banhero. Pur hoje num carece de fazê nada, intão vamo durmi.

Todos perceberam a falta de coragem ou coragem ponderada de José, mas, como ninguém tinha mais coragem do que ele, todos concordaram e foram dormir.

No dia seguinte, José, dotado de uma pseudo-valentia, foi ao banheiro e encontrou exatamente o que rezou a noite inteira para encontrar: o banheiro vazio.

Nesse mesmo dia, por incrível coincidência, Tonhão acordou com uma terrível gripe, que o impediu de se levantar da cama e, por consequência, que ele fosse despejado. Maria — a esposa de José, desculpem não ter citado o nome dela até agora, mas me empolguei com a narrativa — não se perdoaria se ela e seu marido virassem as costas a um doente, mesmo ele sendo o folgado do Tonhão.

Uma semana se passou e não houve uma noite sequer em que o já batizado Fantasma do Banheiro não fizesse sua aparição para assustar a todos na casa. No caso, aparição é só um modo de dizer, pois ninguém teve coragem de ir até o banheiro para ver o que realmente estava acontecendo.

Também não houve uma manhã em que José não fosse ao banheiro avaliar a situação, munido, é claro, de sua coragem ponderada. Tudo isso fez com que todos mudassem seus hábitos e terminassem tudo o que tinham para fazer durante o dia para não precisar ir ao banheiro depois de escurecer. Eles chamavam de coincidência, mas na realidade não passava de medo.

Após um mês, José e Maria já haviam se acostumado ao fantasma, mesmo sem tê-lo visto uma vez sequer. Maria até acendia, toda noite, uma vela para a alma errante que devia, segundo ela, ser de alguém que morreu nas proximidades, com vontade de ir ao banheiro. A aceitação do fantasma trouxe outra vez o foco das atenções para Tonhão, que já estava curado da gripe misteriosa e já poderia ir embora.

José refez o ultimato e disse que ele tinha exatamente vinte e quatro horas para ir embora. Agora, nem uma doença, por mais grave que fosse, faria com que mudasse de ideia.

—  E quanto ao fantasma, você dará conta dele sozinho? — perguntou Tonhão.

—  Como se ocê fosse corajoso o suficiente pra infrenta ele. De mais a mais, ele deveo fantasma di arguem qui morreu na represa, cum vontadi di i nu banhero. Pur isso, toda noite ele vem i discarga no meu banhero. Si ninguém mexê cum ele, ele num vaipruquê mexê cum a gente. I ocê vai imbora u quantu antis, seu chupim —  disse José (vocês devem ter percebido que era ele pelo vocabulário, mas não custa dizer).

— Tudo bem, eu vou embora amanhã mesmo, bem cedo. Não precisa se preocupar — disse Tonhão, com um brilho no olhar que revelava alguma ideia mirabolante que poderia lhe render mais algum tempo de regalias.

Chegada à noite, todos foram se deitar no mesmo horário de sempre, porém Tonhão não dormiu. Estava esperando a pontual aparição do fantasma para dar sua cartada final, que poderia significar — ou não — mais tempo de regalias.

O tão esperado sinal do fantasma veio, pontualmente como sempre. Isso fez com que Tonhão pulasse rapidamente da cama e se precipitasse para fora da casa, em direção ao banheiro. Enfrentando o fantasma, ele imaginava que ganharia crédito com José e, consequentemente, mais tempo de mordomias. Ao chegar ao banheiro, que estava totalmente escuro, Tonhão estava com todo o seu corpo amortecido por efeito do medo e do pavor que, até então, nem havia considerado.

Ao abrir a porta, Tonhão encheu-se de uma valentia até então desconhecida. Entrou no banheiro e fechou a porta, fato que chamou a atenção de José e Maria, que estavam a observar da janela lateral da casa.

Eles se entreolharam, sem conseguir pronunciar uma palavra. O casal estava atento às palavras firmes e fortes que seu hóspede pronunciava dentro do banheiro, para o fantasma.

Dentro do banheiro, porém, a realidade era outra. Tonhão estava se segurando para não ter um ataque de risos com o que realmente era o fantasma. A tão assustadora alma penada não era penada, mas sim peluda. O assustador fantasma era nada mais, nada menos do que um rato, que, ao perceber que as luzes da casa estavam apagadas, subia pela cordinha da descarga para comer a ração das galinhas, que José guardava em um armário exatamente em cima da descarga do banheiro. Isso acionava a descarga e era interpretado por todos como uma aparição fantasmagórica. Como ninguém era corajoso o bastante para averiguar o fato, o mito se criou devido ao medo, comodismo e dogma de todos.

Quando Tonhão saiu do banheiro, todos na casa, ou seja, José e Maria, interpelaram-no a respeito do que havia visto lá dentro e o agora herói disse, em tom solene:

—  O tal fantasma realmente existe e eu falei com ele. Na realidade, o fantasma é um pobre homem que morreu abandonado e com muita vontade de ir ao banheiro. Estava revoltado com seu atual estado e pretendia assombrar a casa de vocês, mas, graças a minha intervenção, decidiu ficar só pelo banheiro mesmo, desde que toda noite eu vá conversar com ele. Ah, ele ainda disse que, por ser tímido, só aceitaria a minha presença no banheiro durante as suas aparições.

Em um misto de admiração e respeito, o casal acolheu o novo membro da família, pois agora não aceitariam de forma alguma que Tonhão fosse embora, tivesse ele o defeito que fosse. Desse dia em diante, Tonhão viveu muito bem às custas do trabalho duro de José e de seu dogmatismo.

Texto destaque do VI Prêmio ABERST de Literatura

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Por RENATO DUTRA

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