CONTOS E MINICONTOS – À beira vida de um álbum de fotografia por Gustavo Reis

CONTOS E MINICONTOS – À beira vida de um álbum de fotografia por Gustavo Reis

Aqui estavas emburrecido! Aninhado ao canto com uma trupe de criançadas estiradas em um tapete macio. Largadas à felicidade de uma pré-mocidade ainda vinda. Deles familiar poucos, mim são, reconheço alguns esforçadamente, enquanto outros me são tão estrangeiros quanto um estrangeiro poderia ser. Havia completado oito anos, Paolo, recém-chegado, cumprimentou-me rapidamente e saiu a fim de receber aos outros convidados. Desde essa época o ar excêntrico já se encarnava em seu olhar lânguido, algo que só veria se acentuar um pouco tempo depois quando nos casássemos. Passo os dedos sobre as lombadas felpudas do velho álbum, como se ali acarinhasse o seu rosto emburrecido, sentindo na maciez poeirenta quase como se sentisse a animosidade do tempo em seu estado mais bruto. Este certamente seria o Roger, o seu primo, os cabelos pretos, os olhos de bichano preguiçoso, a tez morena e a feição rotineiramente astuta de quem sabia mais do que revelaria, não por mesquinhez ou por uma soberba qualquer, claro, mas, por se ater simplesmente na infindável busca pela perspicácia das coisas comuns; tinha, por isso, uma sede de ver de perto as extravagâncias das coisas… veja nessa outra foto aqui, viria Roger no quintal a observar perspicaz mente um círculo de formigas a fisgar migalhas deixadas de um doce; ou como noutro dia em que se fantasiara de flor, com os vestidos velhos de tia Eugênia, colhera algumas flores, e sentara rigidamente no banco perto do jardim e então esperara a fim de olhar o beija-flor sugar o néctar. Ali atrás da vidraça, Paolo o admirava, à luz do sol perpendicularmente escorria sobre Roger, pequenas mariposas a voar entorno dele, seus olhos percebiam prontamente o beija-flor, a sua miudeza veloz, as suas pequenas asas amareladas a contrastar com o azul do céu primaveril. Naquele ínfimo instante, Roger contemplou uma realidade que não somente a dele, mas, tão somente a do beija-flor com toda a magnificência e a delicadeza da tecnicidade no ato de beijar a flor. Haveria naquele ato de poucos segundos um teor singelo, quase divinatório, onde a criatura resigna-se compadecidamente com o próprio criador. Certamente, havia ali um resgate de algo absurdamente sutil, o que, mais tarde, Roger nomearia como sendo o presságio do sentido oculto, um marco simbólico que se perduraria por toda sua vida.

Também adquiririas esse gosto deliberante pela aptidão do ver e do enxergar as excentricidades das coisas, sejam quais forem elas.

Sabes da Serina? Perguntas se embrenhando nos lençóis. A dançarina? A figura de uma mulher pequena de cabelos curtos, bem avermelhados, olhos distantes, os braços estendidos no ar, justamente capturados enquanto performava um dos seus passos de dança, numa dessas noites glamourosas. Tal figura vinha colada ao conto com os seguintes dizeres: bela Serina, dançarina de Herodes, espelho fidedigno de Salomé, 1995. Por ela, enchiam-se salões e mais salões, em dia de apresentação, o Lé Plaisir mal cabia por tantos cavaleiros sedentos por uma carícia de seu olhar, numa súplica insana de um desejo, pois não haveria desejando que não a desejasse mais do que o desejo. Lembras o caso do Pe. Gouveia? Então, aquele padreco, trilhado na fé, recentemente ordenado da paróquia de Santa Maria Egípcia, simpatizara rapidamente com a comunidade. Ao ir à bodega de Tom Luz, como de costume a fazer suas compras do mês, lá encontrou-se com o Jorge, o homem de meia-idade, encostando na bancada, tristemente desatinado, perdi a cabeça, pois não poderia assistir mais o espetáculo da bela Serina. Se eu assistir arrisco acabar com o meu casamento, minha mulher a muito vem desconfiando das minhas andanças no Lé Plaisir. Sofrível dilema, bem sabia o Pe. Gouveia que espelhado na face daquele pobre via as dobraduras desprezíveis da carne. Dá-me cá o ingresso, não faças nada que venha a se arrepender depois, pois mais certo do que a plantação é a colheita. Pegou, então, o ingresso e nem por um segundo sequer titubeou em trocar a batina pelo velho surrado terno. Fizera até a barba, penteara os sedosos cabelos, engraxara os sapatos, se camuflara em um Jorge, fizera tudo isso para assistir ao show da tida estonteante Serina. E lá se apresentava ela, a dançar entre os incensos, os gritos e entre as variadas palmas. Seu corpo quase nu se contorcia ao ritmo said do alaúde, seu olhar vagueava pelo salão no alienamento total. O Pe. Gouveia começava a entender o porquê de tantos homens serem levados a se digladiarem e até mesmo a se separarem de suas famílias.

Serina era uma mulher cheia de excentricidades que a colocava no topo das principais cobiças humanas. Agora, ali, sentado em uma das cadeiras do Lé Plaisir, via que não era todo destituído de juízo os homens quererem se lançar na fantasia de estarem sucumbidos aos pés daquela cobiça. De fato. Serina exercia um efeito que forçosamente o arrastaram para fora da monotonia de sua rotina, assim, como agora fazia com ele. Ia matutando um pensamento consigo mesmo, nessa história, não foi só o santo que perdera a cabeça, há outros também tiveram esse mesmo destino e tantos quantos ainda não receberam essa dura sentença. Certamente, o efeito de Serina sob os homens era irrefutável. No entanto, ao se estar diante dela, surpreendentemente percebia uma versão inversa da outra tão conhecida. Roger e eu, conhecemo-la ocasionalmente durante um desses almoços na casa do Pascal em que alguns os artistas iniciantes demonstravam o seu perfilado artístico aos donos das mãos que os sustentam financeiramente. Dante uma apresentação sinfônica, chegaras tão acanhadamente que quase não a percebi, com o vestidinho azul florido, uma sandália de couro e uma bolsinha de lado, nada em si de muito chamativo, na verdade, arriscava-lhe a beirar ao um teor quase tão cafona. Ela sentara ao lado da matriarca e papeavam com uma terna complacência de duas irmãs que se estimam mutuamente.

No fim, foi o próprio Pascal quem nos apresentou, Roger fazia aquela cara de mamão-murcho que só fazia quando estavas em pura borbulha reflexiva: nada mais do que curioso, não é? O eu que habita no outro não é menos do que uma percepção mínima do ser eu” via, isso, através dos olhos de Serina, a enxergava como feixe do encoberto, inebriava-se. Aquela criatura em nossa frente era outra criatura, outra Serina que não, a que se apresentava nos palcos. A foto que guardava esse dia estava um pouco quanto desgastada, mas dava para discernir numa mesa posta no jardim o rosto amigo de Serina, somava em um sorriso sereno com o do Paolo e com o do Roger e cuja notinha abaixo continha os seguintes dizeres: a inversa face da criatura! Abaixo dela, uma folha bem amarelada continha a colagem de uma manchete do jornal Primeira Via, datada em 8 de setembro de 1995, trazendo a seguinte notícia: FIM DO MISTÉRIO, O PE. GOUVEIA ACABA DE CONFESSAR O SEU ENVOLVIMENTO NO ASSASSINATO DA DANÇARINA SERINA, “ela era uma criatura dada ao lascivo do desejo do pecado e quem melhor do que eu para dessacralizar essa sua carne pérfida” AFIRMA. A matéria segue detalhando todo o sanguinário ocorrido, desde a sua apresentação no Lé Plaisir até a desova do seu corpo em um terreno baldio. O recebimento de sua morte foi um tremendo baque para nós que a tínhamos como uma amiga, uma confidente, uma verdadeira estrela.

Qual a empreitada que se conduz para brilhar mesmo após morta?

Como tentar sobrepor o esquecimento? Aqui, em seu túmulo, jaz o conceito do que foi a Serina, o que ela fez ou deixou de se fazer, quem amou ou desamor, seus vícios, seus devaneios, suas vontades, seus anseios e suas frustrações, a Serina por Serina, estão, assim como ela materialmente morta. Restando apenas na fragmentariedade tênue da abstração de uma imagem que se tenta recuperar a vivência de um riso dado, de um choro, numa dança dançada, de uma comida degustada… nisso se tenta constituir a integridade do que um dia foi Serina-Serina. Anteontem, sentir que a tinha visitado? O seu rosto um pouco apagado, debruçada na janela de sentar a olhar a rotina transcorrida. Dizia-me: logo, não passaremos disso, uma lembrança à mercê da sensação de querer revisitar o antes convivido. Terna sagacidade de um labirinto do qual vinte quatro almas se entregam continuamente à bandeja ao Minotauro; mães que embalam seus filhos mortos; a tragicomédia da condição humana, ah, saudades dos Campos Gregos? Supondo ser obra de inspiração e assumindo total autonomia da ilusão, concebo ir às Campos Gregos, irei como quem anseia por lá encontrar a insígnia perdida do desejo… na foto, havias usado o surrado suéter terracota, presente antigo da tia Eugênia, seus fios brancos enchiam o seu cabelo e a sua barba por sempre estar a se fazer, o olhar fixo a embrenhar nos campos abertos do pensamento, cada flor, cada pedra, cada rio, tão conhecido seu, continha em si um mundo só seu, por isso, zelavas como muito aprumo de quem sabe que tem nas mãos as riquezas mais sutis da Natureza, pois sabias ser todo a Natureza. Lá estavas no morro, na sombra da figueira, a vigiar o rebanho de ovelhas, elas assim como meus pensamentos tão dispersos na vastidão do campo.

Tão contemplativo estavas que hoje, a olhar para qualquer canto, o vejo tão nítido quanto essa fotografia, o cabelo cumprido solto ao ar, a pele bronzeada ao sol, os olhos tão vividamente marrom-terra, a levar nas mãos o velho cajado, com os pés descalços firmados numa intimidade plena com a terra. Lançado na passividade de um mormaço do dia verão, em um pousar reflexivo, em um desses instantes sacros em que a inspiração de uma nova ideia perpassa rapidamente a vista de um artista, por isso, qualquer mero barulho é mais do que o suficiente para tirá-lo desse estado, fazendo com que a inspiração se perda nos confins da mente.

 Por isso, convinha um certo distanciamento primário, espero que me note, anseio por estar sobre presença sua, me enxergar na tua pupila, deleitar com aquela joaninha dedilhando nos dedos teus, me presentificar daquilo que um dia serei eu, uma completitude sagaz de um antes-passado com um depois-futuro atreladamente comungado no eu-presente. Pressinto que chegarás e porás vivacidade nas minhas terrosas fantasias. Meu guardador de ovelhas, diga-me, quais das ovelhinhas buscarás primeiro? Vivo sempre de sensações, o pensar somente pouco me tem serventia, aliás, ele nada me satisfaz. Não fabrico logicidade tão longe de mim, perto cá estou da sensibilidade; a vejo ali, no morro sentado à beira da figueira, a vejo e a prenúncio. Diria Roger, se ainda estivesses aqui, que hás em mim a renovação de um ontem que só se anunciaria no amanhã de hoje. Com finos traços amarelados recortando lá o horizonte da aldeia, numa evidênciado fim de uma madrugada, numa espécie de promessa de um belo dia de veranil. Se posso supor, assim, se sucederia, como costume, sentado à figueira em cima do morrinho com a relva a acarinhar seus pés. Então, seguindo quase como um ritual, desceria os olhos teus ao rebanho que estando logo ali a pastar languidamente e, como uma extensão da visão, incidiria sobre a infinitude do azulado céu, a reparar as formulações das nuvens e olhá-las em uma estreita delicadeza por quem está diante de um mundo, tão digno e sensível, como convém ao Meu guardador de ovelhas. É, por isso, que entras e caminhas livremente na minha aldeia, bebês da minha água, deitas na minha cama, come da minha comida e faze-me companhia nessa pequena aldeia que é tão frequentada por muitos, mas, habitada por poucos. Meu querido, guardador de ovelhas, peço-lhe gentilmente que guardes essa aldeia, assim como guardas as ovelhas de toda selvageria do perigo; humildemente, peço, que projeta cada pedaço desse campo. Esse campo que antes sou eu, a rebanhar os meus pensamentos lentamente lançadosnessa finita travessia da qual denominamos chamar de vida. Do terreiro a visto voltar-se a sentar compenetradamente em seu templo, os feixes de sol que atravessam os galhos da figueira, tocam-lhe a sua pele. A brisa escorre por entre os fios de cabeleira, como se lhe segredassem algo ao pé do ouvido; vejo segreda-lhe o vento.

Todo esse rito aureolava em mim a sensação de sua terna aparição, Gregorovius… Sigo por entre as bordas horizontais brancas, tocando os espaços pretos do papel, reparo a foto de uma memória fotografada. Foi aqui que nos encontramos pela primeira vez, não foi? Não só nesse dia, mas, sim, foi aí que nos encontramos pela primeira vez. Lembro que nesse dia em específico, estávamos na exposição das Mesas quiitas de Julian Radrel, o qual, já fazia um tempo que queria tanto prestigiar. Surpreenderia dizer da euforia que me deteve ao ver na frente do museu da Presença o anúncio de sua estreia. A todos parecia mais uma exposição qualquer, banal até, não conseguiam visualizar nada de extraordinário naquele salão cheio de mesas com variados tamanhos e formatos, colocados aleatoriamente por toda a extensão do museu. Perante aquelas peças insólitas, ia observando minuciosamente cada ponto seu, os míseros detalhes não me escapavam, como, aquela mesa com uma das pernas quebradas; ou aquela mesa ali, toda manchada com respingos de tintas; havia também outra toda envernizada com flores silvestres; já essa aqui tinha sido toda encoberta com colagem de recortes de revistas. Em um certo momento, ajoelhei-me para ver melhor uma mesa pequeninha, quando me deparo com você também ajoelhado ao meu lado.

Surpreendente, né? Ver como essas pilhas de mesas seriam apenas um conjunto de mesas, se não fosse por um ou outro detalhe que as transformam de uma mesa ordinária para uma mesa extraordinária. Isso é que é o mais surpreendente nessa metáfora, talhamos em todas as coisas, a nossa marca, deixamos uma história da nossa vida nela. E a partir daí uma coisa que seria uma coisa qualquer, não mais o é, pois, estendemos nela uma porção da nossa vida. Quantas lembranças não há em cada mesas dessas?… Olhe você aqui… A sutileza dos nossos encontros se condensava justamente nesse contraste de um espaço de uma foto a outra. Veja, nessa foto, aqui, por exemplo, por entre o alvoroço diurno da vida correndo na rua. Aí eu acabava de chegar com aquela bicicleta rochinha, lembra? E assistia a um artista declamar o seu monólogo anacreôntico. Suponho que tragas a taça mais profunda que tiveres e enchas com o mais doce dos vinhos. Não vens, Batilo, que me embriagando assim, conseguirás adentrar naquilo que o meu ser mais íntimo esconde, mas não é culpa sua, antes ser de Eros.

Que poderio tu possuis! Deveria ter antes audácia de Cronos e ter-lhe cortado tuas asas. Eros. No entanto, me armei como um verdadeiro Aquiles em sua vigília de antes batalha, mas, o que adianta se armar todo? Se munir assim? Se a guerra não está lá fora, mas, sim, aqui dentro, nos recônditos do coração. Por favor. Eros, não me alveje com tua flecha… Hei de dá graças ao vinho de Baco… A meu amado, Batilo, sentes aqui perto de mim e deixe-me os meus olhos apreciar a candura dos teus cachos, a vivacidade dos rios pretos que tem como olhos, o teu pescoço mármore, a formosura esbelta do teu corpo atleta, teus olhos e lábios persuasão. Basta, não ouso mais te descrever, pois é querer compreender algo que a inteligência não concebe por mais que tente… Como não poderia tê-lo visto? Estava perto da fonte de Ganímedes, o artista vinha chegando ao fim do seu monólogo e a pequena multidão que uma vez se ajuntara ia se desafazendo aos poucos e seguindo para os seus afazeres. E cá novamente estamos nós mais do nunca com nossos caminhos entrecruzados. Vais algum lugar? Na verdade, só preciso ir ao… ah, deixe, não quero lhe incomodar… Não há incomodo algum, só preciso ir comprar um álbum de fotografias. Minha câmara está quase com memória cheia, então preciso esvaziá-la e revelar algumas fotos, sabe? Posso comprar rapidinho e aí fico livre? Ah, então, você é um fotógrafo? Não, não, é mais um passatempo, sabe? Gosto de fundir a realidade e a memória e fazê-la ser uma coisa só. Como uma espécie de jogo em que tento lembrar momentos que estão à beira da memória que foram eternizados num passe de um clique. Loucura, né? Sim, mas, não tão descabida de valor. Afinal de contas, o que seríamos de nós sem ela, né? Não é toda destituída de valor, pelo contrário, é algo extraordinário. Sim, extraordinário, venha, suba, aqui, na garupa, vamos lá comprar o álbum… e ver essas memórias daqui a alguns anos… Então, Gregorovius, o que achou? Recordo que noutro dia, discutíamos a respeito do que era feito a vida. Quais insumos a constituiria? Bem, certamente de um tanto e de nada; na cama ao meu lado, apega o empoleirado o meu velho álbum de fotografias e então o abre.

Por GUSTAVO REIS

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