Dizem que os estudantes que não querem nada com seus estudos ou com a vida sentam no fundão da sala de aula. Não interagem com os professores nem realizam nenhuma atividade. Preferem o isolamento e vivem às margens do aprendizado escolar. Juliete, estudante do ensino fundamental, sentava no fundão junto a muitos garotos que preferiam falar sobre rock, futebol e mulher.
Juliete era uma garota dos cabelos ruivos quase vermelhos, encaracolados. Tinha pintinhas da cor de ferrugem em suas bochechas. Seus grandes olhos da cor de café revelavam uma menina nada tímida, pelo contrário, era esperta e tinha sempre uma resposta pronta na ponta da língua. Com seus treze anos completos, Juliete já sentia o peso de ser mulher.
Em casa, o convívio com os pais era sempre conflitante. A mãe dava atenção especial aos três filhos menores e se preocupava com o enxoval da filha mais velha que estava prestes a se casar. O pai, sapateiro famoso no bairro, era rígido, achava que menino nascia para trabalhar, sustentar uma família e menina para casar e ter filhos. Mas Juliete quase não via seu pai sorrindo e nos poucos minutos que um sorriso de canto estampava o rosto dele, ela corria para perto e dizia as coisas que lia nos livros.
Às vezes, ele parava de consertar o sapato do cliente e olhava para ela fixamente. Parecia que ele queria entender o motivo de tanta empolgação ao ver a filha narrar as histórias de uma jovem judaica que passou a infância e a adolescência num esconderijo junto com duas irmãs e seus pais. Narrava histórias de uma menina órfã que tentava não ficar triste e tirava ensinamento de tudo que acontecia com ela através do jogo do contente.
Em uma dessas tardes cujo sorriso do pai aparecia como um cometa, desses que passam de década em década, Juliete contou para ele que havia conhecido um menino chamado Zezé e que ele havia a convidado para conhecer um pé de laranja lima. Juliete nunca viu uma árvore dessa e ficou curiosa para entender a imaginação dele que voava como os pássaros livres. O pai interrompeu a narrativa bruscamente e disse olhando nos olhos de café da filha:
___ Onde você conheceu este garoto, Juliete? Na escola? Você caiu na conversa dele? Estou dizendo que escola não é coisa para menina… Eu vou lá saber quem…
Nem terminou de falar e Juliete, rindo do pai, exclamou:
__ Não meu pai!!! Na escola não… foi no livro!
O pai estava consertando uma sandália dourada de uma cliente e, pacientemente, colocou-a no balcão de seu pequeno comércio que ficava ao lado da casa onde residiam. Passou a mão na cabeça calva, coçou a barba branca e, seriamente, falou para filha:
__Não sei onde você tira tanta história, Juliete. Não sei não… Acho que esses livros não estão lhe fazendo bem! Por que não vai ajudar sua mãe com as crianças? Vá ver como Marcelino está. Ele chorou a noite toda. Sua mãe precisa de você! Ou então sente aqui e venha me ajudar no conserto desses sapatos! Mas faça alguma coisa que tire essas bobagens da sua cabeça, menina! Faça alguma coisa útil, Juliete!
Juliete não sabia se ficava triste ou alegre com as palavras do pai. Deu-lhe um rápido beijo na face envelhecida pelo tempo e saiu achando graça das críticas que o pai fazia.
__Livro, livro, livro, meu pai!!! Eu preciso deles! Eles me apresentam tanta gente legal. Eu amo os livrosssssss…
A garota saiu correndo e gritando os nomes das personagens que transformavam a vida dela. Correu antes de receber outra bronca do pai. Correu para ver se a mãe estava precisando realmente dela.
Na escola, continuava sentando no fundão. Lá ela ouvia histórias muito interessantes. Histórias que chamavam a sua atenção bem mais que os conteúdos apresentados pela maioria dos professores cujo pó do giz tornava seus olhares bem restritos. Os colegas que sentavam nas primeiras cadeiras recebiam, além do pó do giz, uma atenção especial dos professores. Mas de vez em quando, ouvia de alguns professores, piadas sobre os alunos que viviam às margens na sala de aula. Quase ninguém ria.
Juliete não se incomodava com os comentários maldosos e capciosos dos professores. Ela era esperta: ouvia as histórias dos colegas ali no fundão e aprendia muito sobre a vida. Sobre o que acontecia fora dos muros da escola. Eram histórias de meninas que engravidavam e os pais as expulsavam de casa, histórias de pessoas que não conseguiam arranjar um emprego por serem negras, histórias de mulheres que trabalhavam tanto como os homens e tinham o salário menor, de crianças que tinham a obrigação de levar o sustento para casa e isso incluía as meninas adolescentes. Ainda ouvia histórias de mulheres que sofriam abuso dos maridos. Eram histórias reais que se misturavam na cabeça de Juliete com tantas outras histórias que ela já tinha lido nos livros.
Nos livros, as histórias pareciam reais. Na realidade, as histórias não pareciam nem um pouco ficcionais. Às vezes, Juliete chorava baixinho para ninguém ver, ali mesmo no fundão da sala de aula. A história do colega Albertino, de dezesseis anos, que havia perdido a mãe para as drogas foi uma que martelou por muito tempo em sua cabeça. E depois de ouvir lá no fundão tudo aquilo, toda aquela realidade da vida dos colegas, como se preocupar em aprender os complementos verbais ou raízes complexas de um polinômio? Não consigo me concentrar! Dizia Juliete baixinho ao ouvir os professores falando que eles não queriam nada com vida e que por isso nunca seriam gente. Mas em casa, longe dos excluídos socialmente, ela se concentrava um pouco e conseguia estudar os assuntos que os seus professores passavam.
Já no último ano do Ensino Médio, uma professora da área de Linguagens, cujos cabelos eram bem parecidos com os seus, solicitou que todos fizessem um caderno de memória onde seria anotado tudo que rebuliçava na cabeça deles.
Juliete achou aquela atividade incrível. Escreveu um caderninho todo e no meio do ano já estava no terceiro caderno. Escrevia sobre tudo: o relacionamento com os pais, os irmãos, a felicidade da irmã casada que estava esperando o primeiro filho, escrevia sobre o ofício do pai e os sapatos que ele consertava, falava sobre as leituras que fazia e sobre as personagens, falava sobre a escola. No último dia de aula dessa professora, a aula foi diferente. Todos os alunos deveriam contar o que sentiram durante a experiência de escrever as impressões sobre o mundo, seu mundo. Muitos colegas choraram ao falar, principalmente aqueles do fundão. Um rapaz alto, negro, de mãos marcadas por calos, disse quase tremulamente:
__ Professora, a senhora me chamou pelo nome. Nenhum professor havia me chamado assim durante estes anos todos que estudo aqui. A senho… senhora, professora, fez com que eu colocasse para fora muitas dores. Este caderno é seu ou posso ficar com ele? Eu me sinto aliviado, professora. Aqui tem muitas histórias, tem a história de minha mãe que partiu tão cedo. Eu nunca usei drogas, professora!
Naquela tarde, Juliete viu a professora sentando lentamente na cadeia em frente à turma. Todos estavam em silêncio ouvindo as narrativas de cada aluno do fundão. Muitos alunos que sentavam nas primeiras cadeiras também choraram. Muitos desses tinham histórias parecidas ou tão intensas quanto as lidas por aqueles estudantes que foram invisibilizados por muitos anos na sala de aula.
Em casa, para contrastar com tantas histórias ouvidas em sua sala de aula, o pai estava sorrindo brincando com os caçulas que mostravam as janelas entre os dentes.
__Vou ser professora, meu pai!
O pai parou e, olhando para ela, ainda sorrindo, falou:
__ Daqui uns dias você casa e terá seus filhos.
Juliete sorriu e, paulatinamente, respondeu-lhe:
__ Vou ter filhos sim, mas quero ter outros tipos de filhos também. Quero ajudar pessoas que sentam no fundão a perceber que vale a pena lutar. Quero ser professora para ouvir. Quero ser professora para ajudar a sorrir.
O pai já estava de costas para ela quando a última frase acabou.
Assim que as inscrições do vestibular abriram, Juliete estava lá na fila para fazer sua inscrição para o curso de Licenciatura em Letras.
Juliete estava sorrindo e lembrando de uma garota que enfrentou até os talibãs pelo direito das mulheres, pelo direito de ir à escola. As duas tinham algo em comum.
Por CLÁUDIA GOMES