Andava pela rua. Distraído. Sacola plástica preta na mão. Havia ido comprar fraldas. Um pacote bem grande, na promoção. É bem verdade que por um longo tempo eu me orgulhei de usar fraldas de pano, ecológicas, com meus dois filhos. Mas agora que o último moleque já está quase desfraldando, enfiamos o pé na jaca. Verdade seja dita, foram quatro anos lavando fraldas. De todo modo, a creche exige fraldas descartáveis, então não havia muito o que fazer. Ele agora passa mais tempo durante a semana na creche do que em casa. Assim, a gente pode trabalhar. Pra sustentar ele. Pra sustentar ela também. É irônicruel como temos que nos separar deles tão jovens pra poder trabalhar e sustentar eles mesmos. Pensava nisso tudo quando me deparei com uma cena. Foi um relance, um momento desses curiosos, que a vida dá de graça. Isso aí foi o que saiu:
Boteco (2022), impulsos elétricos sobre papel virtual.
Pintura móvel. Havia ali um pequeno bar. Um boteco. Quase um corredor que adentrava o meio entre duas lojas. Um balcão em forma de L, com iguarias já meio velhas à mostra, em exibição para os clientes. Bebidas baratas de todos os tipos na prateleira acima, presa à parede por mãos-francesas enferrujadas. Encostado no balcão, um homem. Calça jeans, blusa, casaco. Cabelo bem curto. Na porta do boteco, encostada na parede do lado direito, uma velha. Magra, alta, cabelos brancos, volumosos. Óculos grandes, olhos semicerrados. Na mão direita, um cigarro, que ela levou até a boca, bem devagar. Tragou o cigarro como se tragasse a vida que se passou. Devagar, deixou a fumaça sair e manteve o cigarro próximo à boca. Os olhos ainda semicerrados. E a expressão de profundo vazio. Blasé imersivo, que captura o olhar de quem passa. Próximo ao meio fio, à frente do boteco, um homem. Uma bicicleta estacionada rente ao meio fio. Debruçado na bicicleta, o homem expunha a mesma expressão da velha. Olhava para a esquerda, mas sem ver horizonte algum. Blusa de meia manga azul, bermuda preta, chinelo comum. Bicicleta vermelha, mas enferrujada, mal cuidada. Pobre, posicionada à centro-direita da entrada do bar.
As cadeiras e meses estavam vazias. Ninguém sentado. Ninguém bebendo e conversando. Próximo à velha, havia cadeiras. Ela seguia ali, de pé. Dama de ferro decrépita, silenciosa, tragando o cigarro barato, com os olhos semicerrados. Sem expressão senão o vazio. O nada. Cativante, é verdade. Do tipo que desperta a curiosidade. À direita, a velha só permanecia, alheia ao mundo real de cores fortes e vibrantes, de sensações intensas e texturas que provocam. E me perguntei se ela alguma vez já havia amado. Ela só tinha atenção ao cigarro que chegava já ao fim. Olhei à esquerda, não vi ninguém. Talvez este fosse o problema da cena.
No interior do boteco, porém, havia um homem. Aquele homem de jeans e casaco. E na parede, sob a prateleira, havia uma televisão. Um filme. O Senhor dos Anéis: O Retorno do Rei. E o homem, debruçado no balcão, assistia à chegada do rei Théoden, para salvar Minas Tirith. Belíssima cena, belíssimo discurso. Eu, particularmente, tenho tendência a ficar arrepiado e emocionado quando me deparo com aquela cena. Corre pelas minhas veias uma droga que é um misto refinado de esperança e glória. O homem assistiu às palavras de Théoden, que na dublagem em português ficaram: “Acabem com a ruína e com o fim do mundo! Morte! Morte! Morte!” em que é seguido em coro por todo seu exército. “Vamos Éorlingas!”. Debruçado sobre o balcão de vidro, o homem riu com desdém. Bufou, ironicamente; com profundo desprezo. Se afastou do balcão e caminhou pelo boteco, para o lado de fora, sem dar mais atenção à televisão. Chegando à porta, ele olhou para a esquerda, mas permaneceu ali, no meio de tudo. Entre a saída e a entrada, entre a esquerda e a direita. O lado esquerdo permaneceu vazio. Como estava agora o interior do boteco. Do outro lado da rua, no outro boteco, havia movimento. E uma mulher, na mesa com as outras, dizia em alto e bom som: “É, cara, a fulana ajudou a matar o marido dela!”. Todos riram.
Segui meu caminho, pra casa e pra minha família.
Por MATHEUS VARGAS