CONTOS E MINICONTOS – Colóquio com a mãe por Joaquim Mello

CONTOS E MINICONTOS – Colóquio com a mãe por Joaquim Mello

Assim que chegou ela arreganhou os olhos como que saindo do torpor sonolento ao qual habitualmente se recolhia ao acordar, e foi logo repreendendo: “meu filho, isso lá são horas de chegar em casa? Estava preocupada”.

Abriu os braços para acolhê-lo como sempre fazia quando ele se atrasava. Era agora sua única forma de protegê-lo dos perigos das ruas, trazendo-o para perto de si e de seu colo na tentativa inútil e nostálgica de abrigá-lo de placenta e útero.

O hálito envelhecido de sua saliva grossa e o odor suarento de sua roupa gasta de usos e de tempo o incomodou em princípio. Porém, da mesma maneira que das outras vezes, acostumava-se ao bolor dos minutos mortos. Os anos, embora impalpáveis, deixava nas narinas o rastro insípido de sua passagem.

Nunca fora muito de beijos, não porque não a desejasse beijar e sentir o calor afável de suas bochechas magras e murchas, mas porque ela o criara tão próxima dos olhos e distante dos afagos, tornando-se um homem arredio de carinhos. Por dentro ansiava faminto por afetos frustrados, e por fora era frio, distante e sério, circunspecto como deviam ser os homens de sua idade.

A fome inconfessável lhe devorava por inteiro, enquanto os menos atentos se distraiam em triviais conversas de bares e de expedientes. O mundo indiferente não percebia que ele definhava cotidianamente, assim como sua mãe ali sentada na poltrona da sala de entrada. Talvez por isso quando criança adorava chegar atrasado da escola só para vê-la ao portão preocupada, sofrendo, inquieta e de braços abertos.

Não somente de carências e de trocas de carícias se assentara seu crescimento. Também lhe faltara os companheiros com quem brincar de bola, pega-ladrão e empinar pipa. Sua mãe, constantemente zelosa com a higiene e vigilante contra danos, vírus e acidentes, privara-lhe das ruas e de seus doces riscos.

Fora assim sempre um menino limpo, assustado, proibido e tímido, sem feridas, ranhuras ou braços quebrados. Seu corpo puro de cicatrizes amargava a ausência de toques e amigos. Hoje percebia o pavor de sua mãe dos outros meninos, não porque temesse os machucados ou as brincadeiras, mas a sexualidade hibernante e imatura dos jogos e folguedos infantis.

Agora entendia o quanto deve ter sido difícil para ela criar um homem, principalmente na falta de um pai, morto desde cedo, bem antes que soubesse pronunciar a palavra pai – esta palavra para ele escassa, porém invejada no vocabulário dos vizinhos.

Ela sorriu quando ele lhe estendeu o presente. Suas mãos trêmulas, esverdeadas de varizes, apresentaram-se em abrir o pacote e parecia feliz empanturrando-se de chocolates dietéticos. Ainda de boca cheia lhe perguntou se havia feito o dever de casa. Não querendo contrariá-la acenou que sim. Era melhor para ela continuar a vê-lo menino, alheia ao homem triste em que se transformara agora.

Acostumado ao silêncio de suas conversas, sentou-se ao lado dela contemplando, com certa saudade, aquela sobra materna presa à cadeira e às décadas passadas. Embora nada mais restasse daquela mulher altiva e determinada que tanto o oprimira, era como se ainda exalasse sobrevivente o medo de lhe dizer não.

Transpirava feito criança frente à velha senhora absorta e longínqua. Ela era muito maior e imensa do que aquele corpo franzino curvado com sofreguidão sobre a caixa de chocolates já quase vazia.

Quisera poder dizer que a amava, se assim soubesse. Entre ambos havia um abismo a separar-lhe os sentimentos. Quanta vezes não retornara do colégio sem piscar os olhos, somente para que o visse com olhos lacrimejados como se chorasse? Quantas vezes fingira-se de doente para poder dormir ao seu lado, respirando dela o bafo na espera que lhe virasse o braço na turbulência de seus sonos agitados? Quantas vezes, escondido, vestira-lhe o sutiã na esperança de se acolher aos seus seios? Quantas vezes não remexera suas coisas na busca de uma carta de amor jamais a ele endereçada? Quantas vezes…

Ainda havia tempo de se redimir, notava, se bem que os segundos conspirassem a cada momento. No entanto, continuava parado como que congelado, sequioso de aproximar-se daqueles cabelos não mais tingidos de castanho-claro. Não seria hoje que se sentaria em seu colo de ossos, tocaria sua face enrugada e lhe cobraria as carícias sonegadas. Talvez na próxima visita ou quando lhe visitasse o túmulo com flores nos dias de finados.

Quieto, para não lhe perturbar os devaneios, dirigiu-se manso e melancólico à porta do asilo. Contudo não deixou de ouvir sua velha mãe preocupada suplicar ao menino: “não se atrase novamente de volta da escola. E vê se não joga bola pra não se arranhar nem sujar a farda”

Por JOAQUIM MELLO

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