CONTOS E MINICONTOS – Lua Azul por Carlos Palmito

CONTOS E MINICONTOS – Lua Azul por Carlos Palmito

 Acordo num sobressalto e levanto-me, estou nu no topo de uma colina.

 Lá no alto vejo a lua azul… “Azul?”

 Sob meus pés uma vastidão de areia que se prolonga no sentido oposto do precipício, duas portas a flutuarem no nada, e uma balança com um babuíno no seu topo.

 Só podia estar a sonhar, sabia isso, a lua não é azul, ou será?

 Aproximo-me da balança, sinto uma sede imensurável.

 Do nada uma pluma solidifica-se em pleno ar e plana momentaneamente até pousar num dos pratos da balança.

 — Bem-vindo mortal! — oiço esta voz sobrepor-se ao silêncio desértico em que estava. — Por acaso sabes onde estás? — ontem fiz anos, sabem, ontem fiz anos e apenas senti solidão.

 Olho em meu redor tentando perscrutar a origem da voz, mas tudo se mantém inalterável… duas portas, uma balança, uma pena e um coração… estaria aqui este coração antes?

 — Fazes ideia de onde estás? — Indagou de novo a voz, agora com uma ponta de irritação no tom. — Ou sabes porque aqui estás? — ontem fiz anos, sabem, ontem fiz anos e conduzi até ao mar.

 — Não faço ideia. — respondi a medo, tive receio que a leve irritação se transformasse num ódio bárbaro de um ser que ali não estava.

 — Estás na sala das duas verdades. — afirmou o nada com a sua voz possante. A irritação tinha desaparecido. — Este é o tribunal que decidirá para onde vais nesta tua última jornada. — sala? Isto é um deserto, que sala? Tribunal? Que terei feito ontem, além de celebrar o aniversário?

 — Que queres dizer com sala das duas verdades? Quais verdades? — no topo de cada porta surgiu uma placa, o inferno numa, o céu na outra — Tribunal? Que aconteceu, que faço num tribunal e porque é a lua azul?

 — Quer dizer então que não te recordas de nada de ontem? — ontem fiz anos, sabem, ontem fiz anos e apenas senti solidão, conduzi até ao mar, e fiquei em silêncio no alto de uma escarpa.

 — Não. — respondi em voz baixa, receio ou timidez, não sei responder.

 — Ontem cessaste a existência física. — continuou a voz docilmente. — Aqui nesta balança está uma pena e o teu coração, que neste momento espera apenas a minha ordem para pousar sobre o prato vazio. — o meu coração reside contigo pequena fada perdida, o meu coração continua no rio e na floresta… o meu coração é teu desde o momento que te vi… sou um risco prateado nos céus.

 Sinto uma pontada de dor no peito, levo a mão esquerda lá.

 — Cessei a existência física?

 — Não te recordas mesmo, mortal? — ontem fiz anos, sabem, ontem fiz anos e coloquei a primeira mudança no carro ainda com o travão de mão puxado. — Qual a ultima memória que tens? — ontem fiz anos, sabem, ontem fiz anos e soltei o travão. — Não importa, não estamos aqui para falar sobre como morreste, mas sim como viveste, como pesa o teu coração. — ontem fiz anos, sabem, ontem fiz anos e voei num chiar de pneus e cheiro a borracha queimada nesta falésia.

 Subitamente o céu tornou-se purpura, a lua continuou azul, o ar inundou-se de um odor adocicado, caramelo talvez, ou seria jasmim? Num estrondo, o coração caiu no prato vago… Nova pontada de dor… O macaco pulou e ululou em regozijo puro, pequenas faíscas doiradas saltaram de ambos os pratos, mas nenhum se moveu. O inferno e o céu eram iguais, mas a lua continuava azul.

 — Acho que estamos num impasse, mortal.

 — Impasse? — Acho que afinal esta ainda não é a tua hora. — ontem fiz anos, sabem, ontem fiz anos e voei, não queria mais fazer anos.

 Surgiu uma mão… engraçado, as coisas aqui neste deserto lunar, “Lunar?” parecem surgir no vazio. Ela estalou os dedos.

 — A lua é azul porque não é a lua. Ali em baixo está a residência que optaste por abandonar, naquele circulo azul a flutuar no infinito. — casa é onde o amor se encontra, sem ele sou um sem-abrigo. A minha tinha quatro paredes, dois gatos e aquela que escolhi amar e venerar pelo resto da vida, a pequena fada perdida que encontrei estando eu também perdido, aquela que seria eterna em mim, e eu nela. — Vou permitir que regresses lá, mortal… ama, ama como se não existisse amanhã, ama como se ontem tivesses amado pouco, simplesmente ama.

 Hoje fiz anos, sabem, hoje fiz anos e vim ver o mar, estou no topo de uma falésia a contemplar a vastidão. No alto a lua é prata e o oceano azul, apesar de a esta hora só ver negro.

 Meto a marcha atrás e regresso para onde o amor se encontra.

 

Por CARLOS PALMITO

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