CONTOS E MINICONTOS – Manuscritos para um réu por Ana Escarlate

CONTOS E MINICONTOS – Manuscritos para um réu por Ana Escarlate

 Em uma noite fria de março, após sair da aula de dança uma menina se tornou refém de três aves de rapina. Ela carregava um pequeno diário surrado e gasto pelo tempo, pelo mofo, pela fraca matéria prima, ela escrevia para ninguém, para o vácuo, para o silêncio, para o lixo. Sendo o último o destino mais certo para aquelas folhas. Mas, ao contrário do que era previsto, esses escritos caíram nas mãos de Jesuíno sangue frio e ao ver que coisas íntimas sobre sua vida seriam lidas por um desumano sem pudor, insensível, verme e imoral, Athena sentiu um frio na espinha, um calor nos olhos, uma sede de vingança contra aquele homem e se ela pudesse e tivesse forças, matava-o ali mesmo. Athena passou a se debater no chão com suas mãos amarradas, e mais amargurada do que nunca, se sentia humilhada e sem dignidade alguma. Sentia-se sem vida e definitivamente, pronta para a morte. Jesuíno passou a ler os escritos em silencio, entretanto longe dos olhos de seus subordinados, pois essas coisas não eram para bandidos e muito menos sequestradores como ele. Apesar dos pesares, o traste escondia conhecimentos e aptidões, e a leitura era uma delas.

 O chefe de toda aquela tortura física e psicológica começou a ler na tentativa de conhecer mais sobre aquela refém, quem era ela, quais seus gostos, e assim talvez, fazer exigências mais elaboradas e convincentes no momento do resgate. Mas para sua surpresa e talvez infelicidade, nas primeiras linhas desse diário tão carregado de informações preciosas e secretas, já se lia uma espécie de sumário, que o tornava enfadonho a princípio. Em cada linha lida a curiosidade e a impaciência de Jesuíno cresciam e o dominavam. Paralelo ao momento de leitura do cabeça do crime, Galo e Pé Quente comiam como porcos e assistiam ao campeonato de futebol regional. Afinal de contas, quem resiste a uma partida final de um campeonato?

 Com o passar do dia, o trabalho sujo não parava. Fazia-se ligações para outros comparsas externos e para a família da vítima, atormentando e torturando o psicológico do pai da vítima, um médico rico e cardiopata, Dr Patrício. Este já não comia direito e vivia dentro de uma unidade semi-intensiva, montada em sua casa, recebia ligações de pessoas importantes que ofereciam apoio e palavras de fé.

 __”Nada de polícia” dizia o médico com os olhos tristes e o semblante abatido. Sempre acompanhado de sua esposa e de sua equipe médica particular.

 Com voz tremula e fraca, dizia a mãe da Jovem, Dona Domícia.

 __ “Meu bom Deus, nos ajude a passar por tudo isso sem perder a fé, nem a vida de nossa menina!

 Uma bela mulher de pele clara e firme, bem madura, olhos cor de mel, cabelos castanhos médios, olheiras profundas, descabelada, sem fome e quase sem fé. Não sabia até quando ficaria de pé. Já o seu esposo não possuía mais a mesma dureza no corpo e vitalidade, pois estas estavam abaladas pelo medo de perder a filha, mesmo sendo conhecedor da arte do corpo humano e fraquezas, sucumbiu.

 O local do cativeiro era ironicamente organizado, tinha fogão, geladeira, camas, sofá e até televisão para as vítimas. E quando as vítimas mantinham um bom comportamento, tinham direito a escolher o que queriam assistir, ler ou ouvir. Caso contrário, ficariam no escuro. Com o perdão da palavra, era um sequestro moderno e sem “violência física “e antes de qualquer coisa, não se trata de uma romantização de um crime, mesmo nas circunstâncias já citadas e quase “amenas”, mas era sim um super sequestro top de linha e cheio de cultura e arte. Jesuíno, vilão culto e cheio de mistério, tinha objeções ao seu modo de viver e mesmo que secretas, estavam lá junto aos seus sonhos jamais realizados. Um sentimento obscuro o inquietava sempre que um crime era concluído e ele não era descoberto. Pensava na culpa que ele nunca carregou perante a justiça dos homens, todavia passou a pairar sobre sua cabeça uma senhora nuvem de culpa e passou a lembrar de sua irmã Joana.

 Em uma manhã de março, as escolas voltavam a funcionar e vivia-se a ressaca dos carnavais em meio a buzinas e engarrafamentos. Todas as pessoas tinham pressa e a irmã de Sangue Frio não era uma exceção. Joana precisava ir às pressas a uma reunião de trabalho e pediu para seu irmão a levasse de carona, assim, não perderia o emprego. O sequestrador se negou a levá-la e alegou que se fosse andar em alta velocidade seria mais fácil chegar do outro lado da vida. Ele sempre com respostas sarcásticas e prontas, porém não sabia que suas palavras se tornariam realidade horas depois. Joana resolveu esperar o ônibus da linha 16, o qual tristemente, a levou para uma viagem sem volta.

 Todos esses acontecimentos e lembranças passaram a morar na cabeça fria e calculista de Jesuíno e retornando à realidade concreta em suas mãos, o diário, ele se sentiu literalmente frio e de súbito saiu para respirar um ar quente. Após pensar em uma forma de se livrar daquelas coisas que o incomodavam, chegou a uma conclusão fria: devolver o diário da moça e forçá-la a ler para ele seus segredos, assim, veria todo sofrimento dela e não teria tempo para pensar em suas culpas.

 ___” Meu sangue é frio e estou eu aqui perdendo dinheiro com essas lembranças que não voltam mais. E desses escritos só tirarei proveito e nada mais. ” nada!

 (Lembrem- se dessas últimas palavras pensadas pelo personagem).

 Voltando a si pediu para soltar as mãos da refém. Falou com tom de autoridade e frieza:

 __ por que a moça ficou tão nervosa quando eu peguei o seu caderno de segredos?

 Athena ficou muda e pálida como se escondesse um crime, ou melhor, o pior dele.

 Sangue Frio com seu conhecimento de mundo e de crimes percebeu o temor no olhar da menina, um olhar de pavor e culpa.

 Seria essa criatura uma vilã? Teria ela um segredo tão obscuro e sombrio, que a sua própria família desconhecia, e se viesse à tona?

 __ Athena, então você é deusa dos segredinhos??

 Eu te fiz uma pergunta e estou esperando que você me responda! Garanto que você não quer ter nenhuma cicatriz, ou algumas nessa pele tão bem cuidada.

 __ Ok! Irei dar mais uma olhadinha nos seus escritos e em seguida enviarei para seus pais. Athena deu um forte suspiro, abafou o choro e com os olhos vermelhos de lágrimas, olhou bem nos olhos do seu maior inimigo, não por ser o seu sequestrador, e sim por ousar tocar em sua mais profunda intimidade, intimidade jamais aberta a outra pessoa. Segredos que ela carregava, momentos de sua vida dignos de serem resguardados e talvez, revelados em momentos apropriados e para pessoas específicas. Ela diante de toda essa situação embargou a voz, embora quase não que não conseguia expressar suas ideias.

 __ Senhor sequestrador, eu hoje sou seu alvo, sua oportunidade de fortuna fácil, sou sua presa de ouro. Se por acaso meus pais descobrirem algumas das coisas que nessas folhas estão escritas, talvez, o meu pai não consiga resistir a tanta vergonha tristeza. sendo ele um cardiopata e tradicional homem, mesmo assim, não merece passar por tanto nessa altura da vida. Peça o que quiser, mas não me tire o meu diário, pois nele tem segredos que ainda não estou pronta para revelar.

 A moça se jogou no chão como se sentisse uma dor insuportável no peito e repetia as seguintes palavras:

 __ Eu carrego culpas esmagadoras, dói muito senhor Sangue Frio! Dói de um jeito que me sinto suja como esgoto a céu aberto. Talvez se o senhor sentisse a metade de minha tristeza entendesse meu coração. O homem frio e vilão dessa história teve um momento de comoção e não conseguindo disfarçar sua curiosidade e compaixão, além disso, teve mais uma vez seu pensamento vagueando no passado e no luto culposo, Jesuíno saiu rápido da sala deixando a vítima sem respostas.

 No dia seguinte, Jesuíno decidiu continuar a ler os escritos, no entanto sentiu medo disso. Nas primeiras páginas pôde notar desenhos e trechos da bíblia. Percebeu que na parte inicial do diário não tinha nada que comprometesse a moça, e mesmo assim, seguiu folheando aos poucos, lendo pequenos pensamentos e contemplando os desenhos de pássaros, borboletas que ainda faltavam cores.

 Leu alguns fragmentos:

 “A vida não pode ser igual para todas as pessoas, infelizmente não. Seria bom que todos tivessem a mesma oportunidade de ser feliz e de ser quem quisesse ser”.

 “A dor pode te levar a loucura e te fazer ser quem você não é”. “desta forma, assumimos muitas vezes, falsos papeis neste mundo e isso nos rouba a vida e a paz”.

 “Quando uma mulher sofre abuso, passa em sua mente muitas coisas e uma delas é que: ela se torna semelhante a um objeto, no qual se escarra, cospe, defeca e depois que o limpa, ele será usado novamente. Obs: Só que esse objeto permanecesse imundo por quase uma vida inteira.”

 “Quando alguém machucado pede socorro, gritando e puxando o cabelo do outro, o outro revida, chuta e cospe, no ritmo de uma dança sensual.” Assim como uma pessoa quer se salvar do afogamento, ela faz a outra de boia, não para matar, mas sim para sobreviver”.

 “Nem sempre se quer matar e nem sempre se quer ferir”

 “Se houvesse possibilidade de voltar no tempo, eu voltaria para o ventre, e se assim Deus permitisse.”

 “Ei você, que sofre por não poder voltar no tempo. Você não é a única! Dê-me sua mão e vamos gerar uma corrente de empatia para o mundo”.

 Jesuíno começou a sentir uma gastura desgraçada. Concordava com o que lia, sentia uma certa compaixão pela moça, raiva do tempo e dos estupradores, sentia também um certo alívio por saber que ele não era o único a morrer de remorso e culpa. Notou que alguns dos escritos tinham sido feitos ali mesmo no cativeiro “Nem sempre se quer matar e nem sempre se quer ferir” Começava a entender que ninguém era perfeito na vida. Sangue frio tomou uma decisão: contaria para sua sobrinha como a mãe dela morreu e em seguida pediria o perdão da jovem; devolveria a refém sem pedir resgate algum e se entregaria para a polícia. Assim que correu para pedir o primeiro dos perdões percebeu que Athena tinha sumido, Pé Quente e Galo teriam sido envenenados e mortos, mas como ele não ouviu nada? Naquele dia também passava o campeonato e a televisão tinha um som muito alto, enquanto todos torciam ele se compreendia. E o que será que ele fez com o diário? Teria ele terminado com sua versão ou queimado?

Por ANA ESCARLATE

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