CONTOS E MINICONTOS – Nada como uma boa memória por Roberto Minadeo

CONTOS E MINICONTOS – Nada como uma boa memória por Roberto Minadeo

 Em meio a uma crise política foi anunciado o novo Ministro do Planejamento. Daniela, nascida e criada em Brasília, vivia farta para poder pensar nas altas esferas do poder, ainda mais ao final de um cansativo dia. Então mal percebeu o nome e a fisionomia do novo mandatário, divulgados pelo telejornal.

 Trabalhava como vendedora de moda masculina em uma grande loja de um shopping. Seu trabalho era árduo, desde atender à clientela a arrumar os estoques – aspecto que mais detestava: há pessoas que experimentam inúmeras peças para comprar apenas uma, ou até nenhuma; o que exige que tudo que não foi comprado seja dobrado. Ela não tinha habilidades manuais, assim, enquanto havia colegas que dobravam várias peças em poucos minutos, a pobre Daniela tinha que se concentrar durante minutos para guardar no estoque uma única peça, sendo habitual ter que pedir ajuda às colegas.

 No dia seguinte à troca ministerial, após outro dia exaustivo, deu-se uma coletiva à imprensa, na qual a nova autoridade apresentou o seu programa. Desta vez, foi impossível não prestar atenção à sua fisionomia, devido à elevada exposição midiática da nova instantânea celebridade. Ela demorou a recordar-se de onde conhecia aquele rosto. Após dar tratos à bola, não teve mais dúvidas: ele fora à sua loja e fizera uma compra, há dois ou três meses atrás.

 Comentou o fato com as colegas de trabalho, que, curiosas, começaram a vasculhar os dados relativos aos clientes à cata do ministro – para desespero de nossa vendedora. Tiveram certa decepção, dado que um cliente esporádico ostenta uma ficha relativamente enxuta. O nome coincidia, havia sido feita uma compra de poucas peças de roupa, tendo sido atendido pela própria Daniela.

 As colegas perceberam a atitude enigmática da importante vendedora que atendera ao ministro. Daniela permanecia com o semblante fechado, para não exprimir as suas emoções. Todas perceberam e começaram a bombardeá-la para saber o que ela estava escondendo.

 Franca e de hábitos simples, teve dificuldades em negar que houvera algo. Rindo, ela disse que não se sentia à vontade para falar nada. Tais palavras tiveram o efeito de espicaçar ainda mais a curiosidade de suas colegas – que aumentaram a pressão para saber o que havia ocorrido. A pobre Daniela cedeu, e disse que precisaria do sigilo por parte de todas. Unânimes, juraram que nada diriam.

 Disse lembrar-se claramente que fora o cliente que mais trabalho lhe dera. Entrou na loja, dizendo querer comprar camisas. Começou o desfile de modelos de peças, nada agradava ao refinado e exigente gosto do cliente. As colegas não perderam a chance de dizer que um ministro é chato assim mesmo. O problema não foi esse, acrescentou nossa vendedora, já acostumada a se deparar a cada semana com alguém que examinava de vinte a trinta peças até comprar uma ou, às vezes, nenhuma. Acrescentou que há clientes que experimentam uma infinidade de peças apenas com a intenção de testar a paciência das vendedoras, sabendo de antemão que nada vão comprar. Todas riram, concordando e maldizendo tais testes.

 Depois de mais alguns instantes de silêncio, as colegas já estavam quase pulando no pescoço da coitada da Daniela, cada vez mais acabrunhada em contar o fatídico episódio com o responsável nacional pelo Planejamento. Sua maior amiga do trabalho disse a todas para deixá-la em paz, ela contaria quando estivesse à vontade. As colegas não queriam perder a ocasião e falaram que em Brasília o que não falta é ministro; há alguns que não esquentam a cadeira do cargo nem por um mês. Ninguém levaria a sério qualquer comentário sobre “esse cara”.

 Entrou em ação o mais sério bullying: disseram que se ela não falasse logo, jamais seria ajudada por alguém quando precisasse dobrar as roupas de seus clientes. Ela deixou-se vencer. Fez um gesto pedindo silêncio e respirou fundo.

 Começou sua narrativa. O cidadão entrou na loja, usando roupas casuais. Após experimentar umas vinte camisas, disse que não havia gostado de nenhuma, com uma grosseria que ela nunca vira antes. Estava saindo da loja, quando começou a passar mal, muito mal mesmo. Entrou novamente, dizendo precisar ir à toalete. Com bastante mau humor, ela indicou-lhe o caminho, mas não pôde evitar de pensar que dado que nada lhe havia agradado, ele deveria buscar o banheiro do shopping – ainda mais em meio de uma necessidade que parecia ser das pesadas.

 Todas riram. Pela primeira vez, Daniela se sentiu descontraída. Prosseguiu dizendo que o futuro ministro demorou uma eternidade no banheiro, a ponto de ela se preocupar e de avisar a gerente. Esta bateu à porta para perguntar se tudo estava bem. A resposta foi positiva, então deixaram o tempo dar conta da situação.

 O coitado futuro ministro saiu visivelmente constrangido, pelo atraso e por estar suado e com os cabelos desgrenhados. Pediu um copo d’água. Ao se despedir, desculpou-se pelos transtornos e disse que se via na obrigação de fazer alguma compra. Daniela fitou-o com medo de ter que voltar a desdobrar inúmeras peças; tentou desconversar, disse que tudo estava bem, que essas coisas acontecem, e que não havia nenhuma obrigação de se comprar nada. Entretanto, quanto mais ela falou, apesar de aterrorizada, mais transmitiu a expectativa alinhada ao que o cliente propusera.

 Entrou em cena a melhor memória que nossa vendedora jamais vira. O futuro ministro pediu para conferir seis peças, e as descreveu com os termos mais exatos, relembrando as texturas e as cores – deixando Daniela boquiaberta. Sem experimentá-las novamente, pediu a opinião dela sobre a melhor adequação de cada camisa a cores de calças e de paletós. Foi tudo muito rápido, a opinião dela foi ouvida, houve imediata concordância, seguida do pagamento.

 Ao avaliar tudo, Daniela disse que se todo cliente que experimentasse vinte peças fosse à toalete e comprasse meia dúzia de camisas caras, ela estaria bem melhor de vida, pois teria um enorme acréscimo em suas comissões – embora viesse a trabalhar mais.

 A conversa se esvaiu. Nessa mesma tarde, Daniela estava à entrada da loja, era a sua vez de atender o próximo cliente, quando viu o ministro no corredor do shopping fazendo compras. Ficou aterrorizada, transida de pavor, não podia sair de seu posto, nem manifestar de alguma forma que reconhecera a autoridade, não podia ficar ansiosa e menos ainda, demonstrar que se recordava do lamentável episódio ocorrido. Para surpresa e pavor de sua parte, foi reconhecida.

 O ministro entrou na loja, pediu para ser atendida por ela. Escolheu com rapidez os melhores ternos, calças, gravatas e camisas. À hora de se retirar, contudo, fez questão de agradecer novamente pelo que ocorrera naquele fatídico dia.

 O mundo é pequeno. Uma conhecida de Daniela trabalhava como uma das secretárias no gabinete desse ministro. Logo após a posse, uma pneumonia levou a profissional. O Ministro compareceu ao velório, no qual se depara com nossa sagaz e competente vendedora.

 Os anos se passaram e o Ministro jamais teve a mínima ideia do motivo que o levou a iniciar uma conversa descontraída em pleno velório. Com muito jeito, recordou algumas situações de como a falecida trabalhava bem. Sendo uma temática usual em ocasiões como essa, a genialidade ministerial foi fugir da conversa e dos adjetivos estereotipados. À hora das despedidas, novamente sem saber o que o movia, deixou um cartão, dizendo para procurá-lo o quanto antes.

 Daniela não quis dividir nada com ninguém. Depois de muito pensar, julgou que o Ministro poderia estar à busca de alguém para o lugar da prima e, ainda que de forma velada, fizera um convite a ela. Duas semanas depois, telefonou, e, após esperar bastante, foi atendida pelo próprio Ministro.

 Na mesma tarde tudo foi resolvido: saiu da loja e ocupou o lugar da prima. Gostou de tudo: ambiente mais tranquilo de trabalho, melhor remuneração e maior estabilidade. Todavia, Daniela apreciou especialmente um aspecto da mudança de vida: jamais voltaria a dobrar e desdobrar camisas… jamais ficaria horas e horas de pé…

 Parecia um sonho, tantas vezes acalentado. As coisas estavam nesse pé, quando o Ministro a convidou para um jantar. Esforçou-se por não criar expectativas, por não imaginar coisas, todavia um novo sonho bafejou sua sorte.

 Daniela e o Ministro fizeram uma cerimônia simples e festejam dez anos de felicidade mútua, iniciada em meio a compras e infortúnios de saúde.

Por ROBERTO MINADEO

Pular para o conteúdo