CONTOS E MINICONTOS – Ri Melhor Quem Conhece os Clássicos por Dias Campos

CONTOS E MINICONTOS – Ri Melhor Quem Conhece os Clássicos por Dias Campos

Da sua escola, Pedro Garrido sempre foi o mais franzino e o que maiores notas tirava. Esses dois predicados eram suficientes para que os mais truculentos e ineptos dele fizessem gato e sapato. Por isso, quando o ensino médio terminou, parecia que retiravam um gigantesco bloco de granito dos ombros.

Essa sensação de liberdade, aliando-se ao seu refúgio, o estudo disciplinado, fizeram decolar a autoestima e a autoconfiança do rapaz, o que o levou a conquistar o primeiro lugar no vestibular para Letras da mais afamada universidade do seu Estado.

Devido à minguada constituição física e à meritória classificação, o seu maior temor era ser o alvo predileto dos veteranos. E ele bem que tremeu quando quiseram que dançasse sozinho sobre uma mesa… Mas como havia lindas calouras ao redor, Pedro Garrido foi rapidamente substituído.

Acudido por esse milagre, o que lhe cabia fazer era agradecer aos céus e seguir adiante, procurando não se fazer notar até a data da abolição dos escravos, data em que os bichos ficariam livres do jugo dos capatazes.

Com efeito, o primeiranista passou despercebido até ser contemplado com a alforria. E uma vez liberto, pôde entregar-se com todas as suas forças ao seu sonho juvenil – debruçar-se sobre os livros e se tornar professor de Literatura.

Como amasse escrever, e escrevesse muito além dos de sua idade, Pedro Garrido logo foi descoberto pelo grêmio estudantil, que o encarregou de uma Coluna no seu periódico.

Graças à criatividade, à originalidade e ao bom cunho português, seus contos e crônicas conquistaram estudantes e professores; e a tal ponto, que nomes como Homero, Virgílio, Ovídio e Dante deixaram os claustros acadêmicos e se vulgarizaram até entre os alunos das outras Faculdades, o que fez com que a procura por esses ícones redobrasse os afazeres de mais de uma bibliotecária.

Como os textos de Pedro Garrido eram cada vez mais lidos, apreciados e repassados para além dos muros da universidade, um dos seus contos, o que elegera Machado de Assis como personagem principal, acabou chegando às mãos de Carlos Sampaio, seu colega de classe no colégio e o líder das cavalgaduras que com ele praticavam bullying.

E se é verdade que esse autêntico representante do obscurantismo desdenhou do que leu, também é exato afirmar que ficou mordido de inveja ao identificar o autor com a sua saudosa vítima.

Alheio a essa urticação, Pedro Garrido prosseguiu com determinação e brilhantismo, formando-se Summa cum laude para regozijo de sua família, dos demais alunos e de todo o corpo docente. – O seu TCC foi sobre a influência dos Clássicos em Os Lusíadas.

Como corolário aos seus méritos, mal se iniciavam as férias e ele já recebia uma atraente proposta para lecionar Literatura em uma universidade particular.

Ora, como o seu sonho se tornava realidade; como precisasse bancar a Pós-graduação; e como a paciência de sua noiva não se estenderia para além do Mestrado, Pedro Garrido não titubeou em aceitar o emprego.

Não se poderia descrever a emoção de que foi tomado quando assinou aquele contrato!

Mas como o júbilo não se bastaria à total recuperação das energias, Pedro Garrido e sua futura esposa decidiram viajar. E depois de muito pesquisarem, escolheram um lindo chalé, em uma acolhedora cidadezinha montanhesa.

A viagem foi tranquila. E como chegassem ao centrinho, que, apinhado de turistas e todo iluminado, convidava os amantes a curtirem o frio, os apaixonados concordaram que um bom tinto e um fondue de queijo seriam indispensáveis.

Depois de caminharem um pouco, agarradinhos, toparam com um local muito aconchegante. E decidiram entrar.

Por sorte, havia uma única mesa disponível. E o maître os conduziu com toda solicitude.

Pedro Garrido não poderia sentir-se mais afortunado!… As férias apenas começavam; ao retornar, aguardava-o um bom emprego; sua escrita já caminhava para o terceiro capítulo do romance de estreia; e estava prestes a desfrutar de muitos jantares românticos. Realmente, os bons ventos sopravam fortes nas velas do seu destino, e não havia quem divisasse nuvens acinzentadas no horizonte.

A borrasca, contudo, pode sobrevir de inopino e dos pontos mais improváveis do oceano. Pois não é que na mesa ao lado sentava-se um casal, cujo varão era ninguém menos que o troglodita que atazanara Pedro Garrido durante o ensino médio? E se este não o reconheceu, visto que aquele lhe dava as costas, não se pode dizer o mesmo de Carlos Sampaio, tão logo girou a cabeça buscando o garçom.

Súbito, lembranças deliciosas ressurgiram, e uma vontade louca de retomar as velhas práticas tomou conta do antigo desafeto.

Entretanto, a adolescência ficara para trás. E como eram homens feitos, estavam acompanhados e em lugar público, aquele desejo teve que ser contido.

Só que à medida que o tempo passava, a vileza de Carlos Sampaio só fazia aumentar, o que já incomodava até a sua parceira, que percebia não ser mais o centro das atenções.

Indagado sobre o que acontecia, o ex-perseguidor resolveu contar tudo o que impusera ao seu vizinho. Mas ao contrário do que esperava, risadas compartilhadas, o que ouviu foram desaprovações, o que o deixou bastante contrariado.

As terrinas de sopa de cebola chegaram. E enquanto comentavam o quão deliciosas estavam (receita tradicional francesa), a mente de Carlos Sampaio dividia-se entre as respostas à namorada e as lembranças das torturas impostas a Pedro Garrido – e se continha para não gargalhar.

De repente, Carlos Sampaio não se aguentou e, “sem querer”, deixou a colher escapar da mão. Ao se abaixar para pegá-la, virou o rosto para a mesa do lado e, fingindo surpresa, interpretou o reencontro entre velhos colegas.

Pedro Garrido não se demorou a recordar do malfeitor. E um profundo mal-estar tomou conta do seu coração. Sequer teve tempo para pensar em como reagir, pois o ator levantou-se e foi abraçá-lo. Em seguida, todos se cumprimentaram – A namorada do brutamonte já lhe sentia a má-fé; e se portava com a polidez possível.

Ao contrário do farsante, que, efusivo, relembrava o convívio, gesticulava e ria com prazer, Pedro Garrido sorria forçado, respondia com monossílabos e mal o encarava.

E para que a comédia fosse ainda mais verossímil, Carlos Sampaio não se esqueceu de mencionar que seu irmão caçula cursava engenharia na mesma universidade em que Pedro Garrido se formou, e que, por força dessa coincidência e pelo prestígio alcançado pelo novo escritor, chegara às suas mãos um exemplar daquele conto protagonizado pelo Bruxo do Cosme Velho. E finalizava parabenizando-o muito, pois nunca lera texto tão criativo, original e aprisionador.

Esse elogio, digno de ser encenado nas mais célebres ribaltas, tirava o prumo de Pedro Garrido. Afinal, se Carlos Sampaio sempre foi o seu algoz, como se deparava, agora, com tanta mudança de caráter?

É fato, porém, que Pedro Garrido aprendera que as pessoas podem, sim, melhorar-se com os anos. Seria esse o primeiro caso concreto a experimentá-lo?

Também é correto afirmar que, na Faculdade, ele nunca desprezou um punhado de confetes. Aliás, a cada vez que lhe aplaudiam os textos, mais envaidecido, estimulado e confiante ficava.

Por força dessas matrizes, Pedro Garrido baixava a guarda, e cedia à apetitosa isca.

Mesmo que o peixe já tivesse sido fisgado, é de boa técnica, muitas vezes, que se deixe correr a linha… Foi quando Carlos Sampaio sugeriu juntarem as mesas.

A namorada do pseudo-admirador, no entanto, porque percebesse o seu ardil, bem que tentou desestimular a união, objetando que os pombinhos gostariam de continuar a sós – o outro semblante feminino aquiescia.

Mas diante da insistência do enganador, que fazia questão de colocar as conversas em dia, e da postura ambígua de Pedro Garrido, um balaio em que se chocavam a privacidade possível e ego passível de incenso, as mulheres não tiveram alternativas; em particular porque Carlos Sampaio, tomando a iniciativa, puxou sua mesa e a colou à outra.

Como os recém-chegados não tinham feito os pedidos, o falso amigo não se fez de rogado e recomendou a sopa de cebola. E porque ele e seu par afirmassem que estavam divinas, os noivos abriram mão do fondue e pediram mais duas terrinas.

 Para que o clima ficasse bastante descontraído, Carlos Sampaio, mesmo sem saber se bebiam álcool, tratou de pegar a sua garrafa e encheu de tinto as taças vazias. E como recebesse sorrisos em troca, deram-se ao brinde inicial.

A conversação, de início tímida, foi ganhando ritmo.

Tão logo chegaram as iguarias, Pedro Garrido fez questão de pedir mais uma garrafa do mesmo vinho. E as taças foram erguidas pela segunda vez.

 

Continua….

Por DIAS CAMPOS

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