Cococi, Ceará 1954.
A rua mais estreita da cidade, um beco, era o lugar oculto de fazer planos, namoros e relacionamentos secretos. Doralina Linhares era a filha única e herdeira da fazenda Córrego do Arroz do finado coronel Vespasiano Linhares seu pai, que havia sido assassinado brutalmente por latifundiários na época da decadência do coronelismo no Ceará. Doralina, mais conhecida por Lina era calada, quieta, andava nas ruas da cidade de botas pretas, vestido rosa bem cintado de couro, cabelos loiros ondulados até o meio, olhos verdes, chapéu de couro rosa, luvas pretas e sombrinha rosa também. Lina de mais ou menos uns vinte e cinco anos andava ereta, não falava com ninguém, não olhava para nenhum dos lados por nenhuma distração, era sempre daquele jeito sem dizer nada e fechada, quando ia na taberna comprar algo, de longe nas ruas de blocos vinha fazendo barulhos com os salto de suas botas e andava sempre com as compras escritas no papel para não falar nada com ninguém.
A cidade de Cococi girava em torno de quatro coronéis homens: o coronel Jacinto Vieira, Inácio Barbosa, João Mathias e o mais poderoso e prefeito da cidade Francisco Alves, um homem orgulhoso, com olhos gordos, não se interessava em ajudar a população da cidade. Lina era o alvo desses quatro senhores em Cococi, ela era a paixão desses quatro homens que queriam casar com ela por ter direito às terras, mas Lina os desprezou. As terras de Lina e sua família eram enormes, ricas em fartura e em água para o gado durante a seca. Mas a briga e a ambição desses quatro senhores era a vontade em explorar as terras de Lina para extrair petróleo. Rezava a lenda que, nas terras do finado coronel Vespasiano Linhares havia uma mina de petróleo. Lina como era uma moça forte, não deixava ninguém se apossar de suas terras. Lina não venderia jamais as suas terras.
O bordel Deja Vu de Chiquinha Amparo e suas prostitutas ao lado do beco estreito estava animado e agitado em plena noite de quarta-feira. Os quatro senhores sentaram em uma mesa no beco para uma reunião que já haviam marcado, e mandaram fechar com cortinas de couro de forrar tendas para fazerem seus planos em oculto silêncio. O prefeito Francisco, homem corrupto deu início à reunião bem sincero e disposto à fazer tudo o que fosse necessário para conseguir às terras de Lina e repartir entre seus aliados.
-Meus caros senhores, convoquei vossos senhores aqui nessa reunião, pois eu cheguei à uma conclusão final, só nos resta uma coisa à fazer para a nossa esperança de possuir às terras de Doralina Linhares não morrer e serem nossas. Vamos matar a Doralina.
-Mas o quê?- Como não pensamos nisto antes, -boa ideia.
-E se a justiça souber disso prefeito Francisco? -perguntou o coronel Inácio Barbosa.
-A justiça não tem nada que saber disso, afinal podemos ser acobertados, e vamos dividir às terras, principalmente para alguns de vocês que devem dívidas para a minha prefeitura pagarem suas contas. -Disse Francisco.
-Coronel Jacinto estar me devendo quatrocentos mil réis, do empréstimo que fez para irrigar a sua plantação.
-Eu irei pagar prefeito, eu creio, assim que dividimos as terras da sinhazinha metida.
-Acho muito bom, porque se o senhor não me pagar, eu tomo a sua casa e lhe capo de vez.
-E como iremos dar um fim na sinhazinha metida se a fazenda dela é vigiada por homens negros armados até os dentes? -perguntou o coronel Jacinto.
-Temos que ser inteligentes e não falhar no plano, vamos fazer uma tocaia para primeiro raptar ela, prendê-la, torturar e depois matá-la.
-E como seria essa tal tocaia?-perguntou João Mathias.
-Será muito fácil, quando ela estiver vindo na cidade, como todos os dias ela vem na taberna do seu Cordeiro de manhã cedo, vamos pegar ela de surpresa no caminho, enquanto ela vier andando sozinha, vamos estar escondidos no mato ralo da caatinga e quando ela menos esperar vamos pegá-la de surpresa com um bote- disse Francisco Alves.
Os quatro homens brindaram com suas garrafas de rum na noite quente de lua clara, pois o amanhã os aguardava com boas ou más siladas. O relógio da Igreja Matriz de Nossa Senhora do Carmo estava badalando as seis da manhã, e uma multidão já acordada girava no meio de beato Encarnação que gritava:
-Vivemos numa terra de olho gordo, numa terra de ambição. Onde um prefeito corrupto, não tem dó da miséria da nossa população. Fora Francisco Alves. Fora daqui! Assassino, todos gritavam.
O prefeito abriu a janela de sua casa para ver o que era, mas rapidamente fechou, o povo queria agredi-lo. Ele perguntou do seu secretário o que havia de acontecido tão grave na cidade para estarem todos contra ele. O secretário respondeu: -Doralina Linhares, senhor, a causa disso se chama Doralina Linhares que foi morta hoje pela manhã em sua casa às cinco horas em ponto.
-Mas o quê?
-Isso mesmo que o senhor ouviu, Doralina Linhares está morta, e todos falam por uma boca só que foi o senhor.
-Queremos justiça!!! Gritava a população lá fora contida pela polícia e pelo delegado da cidade tenente Maurício Bezerra.
O beato Encarnação que morava nas ruas de Cococi pregando o fanatismo religioso pelo árido e miserável sertão subiu num palanque e dizia:
-Doralina podia ser uma sinhá calada ou metida, mas nunca fez mal para nenhum de nós aqui dessa cidade. Esse ato horrendo tem nome: Francisco Alves. Fora seu corrupto, fora!…
Francisco ficou pasmo pensando, que na noite anterior ele e os amigos planejaram em matar Doralina, mas foi um plano que rápido foi executado.
De repente o delegado Maurício pede permissão para entrar na prefeitura:
-Prefeito Francisco, queremos que o senhor nos acompanhe até a delegacia. O povo quer ver o senhor no xadrez.
-Isso é inadmissível, eu ainda sou o prefeito dessa cidade.
-E eu ainda sou o delegado dessa cidade, portanto, obedeça as leis pois a justiça é formada por leis.
Francisco acompanhou o delegado até a delegacia, enquanto o povo ia atrás querendo agredi-lo. O corpo de Doralina já estava pronto em sua casa para ser velado, a cidade inteira foi até a sua fazenda velar o corpo que havia morrido com três balas no peito. Enquanto os empregados e vigias da fazenda estavam sendo entrevistados pelo delegado na delegacia da cidade. João Mathias, Jacinto Vieira e Inácio Barbosa foram até a fazenda tirar seus chapéus e agradecer a morte por ter levado sua inimiga, enquanto Francisco Alves era o único apontado como culpado pela morte da sinhazinha. De acordo com o depoimento dos empregados do Córrego do Arroz, Doralina sofria de insônia, na madrugada enquanto todos dormiam na fazenda e os capangas vigiavam a porteira, Doralina se levantou as três horas da madrugada para bordar uma toalha para se distrair, sentada em sua cadeira de balanço com a janela aberta para entrar vento e com as lamparinas do quarto acesas, a moça levou três tiros no peito às cinco horas da manhã em ponto sobre o bordado branco de renda que ficou ensanguentado. Quem estava vigiando a porteira da fazenda contou que não ouviu nenhum barulho de tiros, nem os cachorros estranharem ninguém. O telégrafo de Cococi escreveu o mais rápido possível sobre o assassinato da moça para os jornais da capital e se a moça ainda tinha algum parente distante para vim se despedir dela.
João Mathias se aproximou do cadáver que parecia estar dormindo, beijou o corpo não no sentido literal, mas no sentido de apreciar a desgraça alheia. Jacinto Vieira, só foi mesmo para marcar presença e não ficar mal falado, enquanto as crianças da cidade, idosos e crioulos empregados de Doralina choravam aos prantos amargos da dor de perder alguém tão jovem, gentil com eles de forma assim tão horrenda e cruel. Inácio estava alegre, que se Francisco fosse mesmo ser preso, sobrariam mais terras para os três dividirem. Romano, um ex-escravo da fazenda de Doralina que vigiava o terreno perguntou o que Jacinto, Inácio e João estavam fazendo ali naquele velório, que eles poderiam se retirar dali, amigos de assassino.
-Nós viemos aqui prestar nossas condolências à amada sinhá Doralina-disse o coronel Inácio.
-Podem se retirar daqui agora ou senão eu meto bala nos três.
Celma, a empregada da fazenda e mãe de Romano chegou perto do seu filho abraçando o e disse:
-Filho, respeita o velório da nossa sinhá. Manda esses senhores irem embora e ficamos em paz, vão embora por favor. A sinhá não merece hipocrisia, ainda bem que ela não tá mais aqui para ver, pois ela não gostava dos senhores.
-Vamos meus amigos, essa fazenda não é digna de nossos sentimentos. Um dia essa terra e essa casa serão nossas e colocaremos todos vocês pra fora- disse o coronel Jacinto.
-Veremos quem tem pulso mais forte, fora, vão embora agora-disse Romano.
Os três homens saíram expulsos dali mas com tramoias para o que iriam fazer depois que Lina fosse enterrada. Francisco Alves foi definitivamente preso até descobrirem em um julgamento quem foi o autor da morte de Lina, as portas e janelas do Cococi se fecharam diante daquele episódio turbulento e tenebroso na pequena cidade, o sino da Matriz se calou, e o vigário as portas do templo fechou. Lina foi enterrada no cemitério árduo e dificultoso pela terra vermelha seca, sem chuvas há meses logo quando chegou um único parente, a única alma vivente ainda existente de sua família. Severino Neves Linhares havia chegado da capital no Cococi após saber da barbaridade que cometeram com sua única sobrinha. Severino ficou responsável pela fazenda, mas ele não se interessou em trabalhar na agricultura e nem em criar gado naquela região seca e agora assombrosa após os assassinatos de Vespasiano e Lina. Foi então que Severino resolveu vender as terras, enquanto Francisco Alves e seus três amigos agora na cadeia por roubarem a prefeitura de Cococi já não tinham mais esperanças de serem donos do Córrego do Arroz, que agora já não tinha mais dono, estava abandonado, destruído em ruínas.
Os anos se passaram e nunca descobriram quem foi o assassino de Doralina Linhares, nunca mais uma alma sequer voltou a morar na cidade de Cococi que agora era “a cidade fantasma do Ceará”, abandonada e coberta de veredas espinhosas da caatinga do sertão nordestino.
Por LUIZ FELIPE