Estou nesta, que me dedilha as vírgulas, movimenta de cima para baixo e pontua o tempo entre tempos e me lê. Nesta vesícula que guarda cálculos, resíduos do cálcio que me transita e intriga os rins. Nesta ilharga que me alimenta de frágeis raízes, alguns frutos altos quase inacessíveis, cocos difíceis de se abrir.
E o pensamento em “Ilha de Dentro” se desconcentra de mim e me foge como a fuga de um réptil na estrada.
O que me impede de me concentrar, preciso escrever de relacionamentos, de dualidades, de antagonismos, de paradoxos , perplexidades entre mãe e filha, motivo este que me trouxe à esta ilha, onde convivo com esta dor que incomoda minhas articulações do quadril e me impede de andar, metaforizando meus anseios e minha paralisia emocional no sentido de amar incondicionalmente quem sofreu em corredores psiquiátricos entre crises e choques, com sequelas de extrema ingenuidade. Onde encontro a afinidade?
Distraída e absorta com minhas insolúveis questões de amor próprio e o materno, nas pedras da praia observo um lagarto e me espanto com sua imobilidade ameaçadora para meus pensamentos. Tenho medo, muito pavor. Estou perplexamente travada de corpo e atitude. Os répteis me assustam, e mais ainda me apavora essa incompreendida fobia.
Escrevo.
Transformo o momento em prosa poética de meu ego em existencialismo como Camus relata o deserto e seu calor insuportável onde somente o lagarto resiliente supera.
Sou mais horrível que este lagarto, eu Sophia Poët, vivo sem água debaixo de um sol que mumifica e não consigo mudar meus sentimentos.
Relato o absurdo humano e suas relações frente ao paradoxo intelectualidade e amor incondicional.
Qual a beleza do homem que nega sua própria origem?
Que resistência tem uma mulher que se isola em si mesma para escrever de liberdade feminina, se é presa à própria intolerância com pensamentos rasos. Escrevo.
Estou nesta ilha, “Ilha de Dentro“, onde o vento soprado do mar não traz paz, mas apenas o eco de uma solidão seca. Dedilho as vírgulas no vazio do tempo, tentando dar ordem aos impulsos que me arrastam de um lado a outro, como se a própria areia queimasse sob meus pés, recusando-me o descanso. Sinto o calor me cercando como uma prisão invisível, sufocando cada tentativa de avanço, imobilizando-me em pensamentos circulares que fogem como um réptil sob o sol. Sou parte desta aridez, desta terra onde a vida sobrevive sem florescer, rastejando em pequenos fragmentos de teimosia.
O sol aqui não me ilumina, apenas pesa. Nessa luz implacável, minha própria mente vacila entre querer fugir e ser absorvida pelo solo. E ao lado das pedras, eu o vejo: o lagarto.
Está ali, indiferente, no calor que me traga, imóvel como uma estátua cinzenta, cuja pele parece fundida ao solo. Sua presença me incomoda, me obriga a confrontar aquilo que fujo: ele é o ser completo, adaptado a um universo que me rejeita. Um ser que não precisa de palavras, de argumentos, de vínculos; ele apenas existe. Como Camus descreve o deserto e seu silêncio absoluto, onde apenas criaturas como ele, que aceitam sem questionar, podem suportar o absurdo de sua própria existência.
Eu, Sophia, sou mais frágil do que este lagarto. Vivo num calor que me mumifica, seco de afeto, com uma sede que não consigo saciar, com um amor que não consigo entender. Ele rasteja, indiferente às complexidades, à angústia de uma filha que não sabe amar incondicionalmente. E eu me pergunto, qual a beleza de uma criatura que nega sua origem, sua simplicidade, que busca algo onde não há nada? O lagarto é a própria representação do essencial que eu não posso alcançar, do ser que nada espera e nada precisa. Ele não ama, não detesta; é, no fundo, o próprio emblema do absurdo.
Eu, com minha mente trancafiada na busca por sentido, olho para minha mãe e não a compreendo. Tento escrever sobre liberdade, sobre autonomia, mas sou prisioneira de um ressentimento que envenena minhas palavras. Tento me distanciar da fragilidade emocional que enxergo nela, da simplicidade que me desarma, mas sinto que estou presa. Sou a prisioneira de minhas próprias ideias, uma mulher isolada em minha intelectualidade estéril, incapaz de aceitar a plenitude de um amor sem porquês, sem intelectualizar, sem julgar.
Enquanto o lagarto resiste ao sol, imóvel e completo em sua solidão, eu me debato na contradição de querer liberdade e ao mesmo tempo querer romper com as correntes da minha própria intolerância. E ele não precisa me responder, não tem essa angústia, nem esse cansaço. Ele é apenas um ser que resiste. Eu vejo o lagarto como meu próprio avesso, como o que poderia ser, se aceitasse minha condição sem essa busca incansável de significados. Talvez a resistência esteja ali, nesse aceitar o absurdo de viver sem respostas, de amar sem exigências. Ele é o que eu não sou: a presença crua e direta daquilo que não precisa de porquês, a aceitação do calor sem fuga, do deserto sem sombra.
Assim, permaneço, vendo-o em sua indiferença absoluta, na serenidade de ser o que alcançarei?
Por RUTE ELLA DOMINICI