Era a manhã do dia 23 de dezembro, véspera do Natal. Todos Natais, para mim, fazem me lembrar das festas, dos presentes, das reuniões em família. Porém, esse acabou tendo um sabor diferente naquele ano.
Eu acabei de chegar para dar um último adeus a uma pessoa, de idade já avançada, que eu, há muito tempo, acompanhara a sua jornada. Era uma mulher de um sorriso fácil, adorava estar em uma roda de amigos, temperamental, às vezes, mas, na medida certa, o que nos faz mais humanos, com nossos erros, com nossos acertos. Afinal, são eles que nos fazem crescer.
Sempre estava atenta quando o assunto era a família e se transformava em uma leoa quando era para defender os seus seis filhos. Presenciei, pessoalmente, muitas histórias a seu respeito de luta, coragem e determinação. Algumas memórias que eu ouvi contar, hoje, carrego comigo, outras memórias foram levadas pelo vento.
Ela repousa o sono dos anjos enquanto eu observo os vitrais azuis, verdes, amarelos da capela refletirem em seu semblante uma tênue luz de paz, de tranquilidade, de aconchego. Ouço leves murmúrios, alguns soluços, e uma estranha sensação de mistério paira no ar, enquanto eu observo as flores brancas espalhadas em seu corpo que exalam a leveza dos tempos de luz. Os pensamentos conduzem-me por mares calmos da vida dessa mulher que, ao me ver nascer, segurou-me em seus braços, e neles sempre procurei meu refúgio.
Ao buscar em minha mente resquícios de suas histórias, algumas que eu presenciara, outras histórias de que apenas ouvi falar. É como se eu navegasse por lugares cujos destinos eu já conhecia.
Nesse momento, enquanto uns choram, eu calmamente conduzo minha mãe como se tivéssemos deslizando em um barco, através das águas profundas, negras, enigmáticas. Uma estranha sensação de paz nos abraça, e a noite escura só é quebrada pelo brilho da lua que se espelha nas ondas mansas, estranhamente calmas. O ritmo compassado dos remos quebram o sossego profundo da noite. Uma tênue luz reflete em seu rosto a doce paz dos anjos. Eu a ouço atentamente contar suas longas histórias – que tantas vezes ouvi. Eram relatos das vidas de seus filhos, da mãe que ama, que sofre, que ouve, que chora, que ri, que erra, que, às vezes, é dura, mas, no final, sempre nos dá um colo, um carinho, um abraço. Enquanto a ouço, não vejo o tempo passar. Eis que, de repente, lá na outra margem, avisto uma luz. É meu ponto de chegada, é a sua derradeira despedida.
Depois sigo meu trajeto de volta para um rumo oposto na outra margem do rio. Uma sensação de paz e calma inundam minha alma, e dão-me forças para prosseguir.
Na minha memória, ficarão as histórias de uma mulher, de mãe guerreira que eu tanto amei. Sempre que sentir saudades, irei abrir as caixinhas dessas lembranças revivendo cada uma delas.
Quando me sentir sozinho, lembrar-me-ei dos momentos em que conversávamos, até altas horas, na varanda da sala. No momento em que eu ficar triste, recordarei o aconchego do seu afago. Quando estiver em uma roda de amigos, verei com saudade seu sorriso fácil. À medida que um filho meu precisar de colo, eu o darei, pois, nos momentos que mais precisei dele, eu o tive.
Enquanto estiver ancorado nesse porto chamado vida, seguirei o curso das águas. Quando chegar os tempos de travessia, pegarei o barco das minhas memórias, porque saberei que estarás lá na outra margem me esperando, e juntos dividiremos nossas histórias.
Por NERI LUIZ CAPPELLARI