CRÔNICAS – Jantar acompanhado por Neri Capellari

CRÔNICAS – Jantar acompanhado por Neri Capellari

 Ontem, na hora do jantar, liguei a televisão para assistir ao noticiário com o intuito de manter-me informado sobre as notícias do dia. Bastou uma hora televisiva para dividir o meu sagrado café com um estuprador de uma cidade do interior de São Paulo, o meu pão e manteiga com Donald Trump e todos seus seguidores que invadiram o Capitólio, a geleia de morango com Kim Jong-un, ditador da Coreia do Norte, o presunto e queijo com corpos de civis mortos em um edifício habitacional na cidade de Kiew, Ucrânia. Por fim, nos intervalos de propaganda, tive que engolir o último gole de leite misturado com um shampoo e condicionador: o único que deixa seus cabelos mais leves, bonitos, soltos e desembaraçados.

 Tudo isso nos leva crer que a nossa mesa de jantar está ficando muito pequena para tantos convidados. Portanto, ou nós selecionamos melhor os penetras, ou estaremos fadados a perder o que nos resta da nossa privacidade, da autonomia, do sossego e de um bom convívio familiar.

 Constantemente estamos sendo bombardeados pelos meios de comunicação que, com o apertar de um botão, conseguem se infiltrar em nossas casas e invadir o nosso lar. Hoje um tsunami que ocorre em uma longínqua ilha da Indonésia inunda a nossa sala e, em segundos, passamos a conviver com a dor das vítimas. As cinzas do vulcão Stromboli, na Itália, e a lava expelida de seu cume saíram da telinha do meu televisor, outro dia, e esquentaram o meu sofá. A fumaça da queimada ocorrida no pantanal do Mato Grosso, ontem, impregnou-se na minha casa e me senti sufocado mesmo não estando lá. Às vezes, uma propaganda de uma televisão é tão envolvente que, embora não seja necessária, nós a acabamos adquirindo em 36 suaves prestações. A tecnologia é importante e apresenta pontos positivos em diversas áreas.

 No entanto, chega uma hora que devemos desligar o botão do controle remoto e ligarmos a outra tecla que vem do coração. Devemos guardar um lugar à mesa para o convívio familiar em que vamos conversar sobre o nosso dia a dia. Aquele sagrado instante em que nós nos reunimos para contar sobre como foi o nosso dia no trabalho. Nessa ocasião, a gente relata sobre o ônibus que atrasou e nos fez perder a hora da consulta com o médico, fala a respeito de um assunto que nos chateou durante a nossa jornada de trabalho e comenta sobre as notas do boletim escolar do filho que não foi bem em matemática. É o momento também de perceber que a filha está muito quieta e, ao perguntar-lhe, a gente consegue saber que ela brigou com o namorado. Falamos ainda da perspectiva de viajem, em família, para o próximo período de férias. Confidenciamos nossos sentimentos, anseios, as coisas simples que acontecem no dia a dia e conectam nossas vidas com o ambiente familiar.

 É inevitável e necessário o convívio com as tecnologias que nos cercam, mas sobretudo devemos estar atentos a não perdermos o nosso humor, a nossa essência, como família, como pessoas.

 Poderá até existir um momento em que nós possamos deixar as visitas se sentarem conosco para nos mantermos conectados com o mundo. Porém, devemos selecionar os hóspedes e estabelecermos os horários dos encontros.

 Caso contrário, eles se sentarão à nossa mesa e nós seremos os convidados.

Por NERI CAPELLARI

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