CRÔNICAS – Mesa indiscreta por Sônia Regina Rocha

CRÔNICAS – Mesa indiscreta por Sônia Regina Rocha

– Estou organizando o jantar de fim de ano – disse o chefe no momento em que Alice entrou em sua sala, para assinar o ponto – Sugiro que formem uma dupla.

  Alice e Heitor se olharam pela primeira vez. O chefe continuou:

 – A propósito, Heitor, essa é Alice, viúva. Alice, esse é Heitor, divorciado. Ele chegou hoje, transferido. Pronto. Já os apresentei.

 Situação delicada. Aos 50 anos, a última coisa de que Alice precisava era de um cupido.

O espécime masculino à sua frente, na verdade, era um pedaço de mau caminho. E o chefe a colocá-la nessa saia justa!

– Heitor vai levar a namorada no jantar.

– Que namorada?

– A sua.

– Venha comigo… Eu sou preguiçoso, você pode me poupar o trabalho de sair à procura de companhia.

Ele dirigiu a Alice um caloroso sorriso, antes de jogar no ar a pergunta:

– Você tem carro? Eu moro ao lado desse restaurante. Então, se você for em seu carro, eu não preciso buscar você.

– Quanto cavalheirismo.

– Eu sou carioca – e, com essa explicação que não explicava nada, ele encerrou o primeiro desencontro.

Alice não poderia explicar o fascínio que esse homem rude e desatento passou a exercer sobre ela. Ela resolveu encarar o desafio e conquistá-lo, deixando bem claras as suas intenções.

– Quem sabe, depois do tal jantar, a gente vá tomar um café da manhã na minha varanda – concordou ele, distraído.

Na noite do jantar, Alice estreou um vestido novo e entrou confiante no Chez Maurice. Os colegas lá estavam, elegantes. Só o seu par estava de short e chinelão, completamente à vontade, como se estivesse na praia.

A conversa ficou animada.

Viviane, toda maternal, apoderava-se das travessas e ia servindo todos à sua volta.

Carmem dava pequenas mordidas em cada acepipe, mastigando vagarosa. Taís, sentada ao lado de Alice, não parava de falar, experimentava de tudo só para deixar as iguarias mordidas amontoadas no prato. O marido dela, alheio, bebericava concentrado sua dose de uísque. Agnaldo, que comeu pão com manteiga, risoto, bife, purê de batatas, elogiava o gostinho caseiro da comida. Horácio enchia e esvaziava o prato automaticamente com o que passasse a sua frente e engolia tudo como uma draga.

Heitor ingeria doses alternadas de pinga e cerveja, enquanto, com o garfo, mexia indolentemente a comida no prato.

– Existem gourmets e gourmands. Os psiquiatras conhecem bem as correlações entre o sexo e a comida. – soltou ele, lá pelas tantas.

Alice sobressaltou-se. Heitor piscou-lhe um olho e abaixou a voz:

– Não é interessante como as pessoas se revelam à mesa?

Os casais, aos poucos, afastavam os guardanapos e iam para a pista de dança. Ficaram apenas os dois à mesa.

– Que bom ficar em paz – Alice desabafou, olhando para a cadeira vazia de Taís.

– Ela precisa de um ouvinte – rebateu Heitor – O marido há muito não escuta o tanto que ela fala.

Alice sorriu. Heitor a provocou:

– Você também estava observando. Eu vi.

– Lembrei que você é psiquiatra. Vai dizer que Viviane é mãezona.

– Viviane – ele abaixou a voz – nunca teve um orgasmo na vida. Ela nunca relaxa o suficiente para chegar lá.

Alice, de repente, lembrou-se de que ele a vira comer. Ele continuou:

– Agnaldo é corno.

– Como pode dizer isso?

– Se não é, a mulher deve estar morta de tédio de fazer todo dia a mesma coisa.

– Isso é maldade – Alice estava admirada pela rapidez com que o encantamento que ele exercera sobre ela desaparecera.

– Horácio, aquele apressadinho, é ejaculador precoce.

– Pare. Eu nem quero ouvir o que tem a dizer sobre mim.

– Você? Minha querida, eu e você não temos nada em comum. Veja, eu sou da turma da cerveja. Você é da turma do vinho.

. Alice rolou o copo vazio entre as mãos.

– O que há de errado com os enólogos?

– Errado? Nada. Quem toma vinho é elegante. Escolhe com cuidado suas roupas. Come do bom e do melhor. Gosta de livros. Viaja, mas não para qualquer lugar. Escolhe o roteiro. Aposto que você prefere música clássica. Aprecia uma ópera de vez em quando. Prefere teatro a cinema.

– Então é isso? O pecado da gula entrega tudo?

– Só para nós, psiquiatras. – completou ele, piscando-lhe um olho.

Alice nem ficou triste por não ter usado as camisinhas que levara na bolsa. Heitor a faz rir até hoje. Seus ditos irreverentes e seu sorriso cálido amenizam os tropeços do cotidiano. É uma delícia trabalhar com ele. Jamais se tornaram íntimos. Cerveja e vinho são incompatíveis.

Por SÔNIA REGINA ROCHA

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