CRÔNICAS – Sobre o soco que me ensinou o que é justiça por Wendell Almeida

CRÔNICAS – Sobre o soco que me ensinou o que é justiça por Wendell Almeida

 Lembro da juventude nas aulas de boxe. É como um mantra que começava com jab, direto, cruzado, direto e ia ficando mais complexo e com menos tempo para pensar ou respirar. Olhando para esse momento, se parece tanto com a vida…

 Meu professor dizia: quando colocar as luvas, o objetivo do cara na sua frente é te derrubar, enquanto ele ainda estiver de pé, não pare de bater. Quando um dos dois cair, mostre respeito, isso é o que separa os bons e os maus lutadores.

 Tinha um cara que sempre treinava esquiva comigo. O professor dizia: você abaixa a cabeça toda vez que tenta sair de um cruzado que vem mais baixo. O pêndulo te enfraquece. Ahh! Schopenhauer.

 Não conseguia mudar. Treinava todo tipo de esquiva para evitar o golpe e ouvia: você só vai parar com isso quando levantar e tiver uma mão no meio da sua cara.

 Os dois riam e continuavam o treino de esquivas até o dia que tivemos de nos enfrentar

 Mantinha os olhos fixos nos meus pés, girava os calcanhares nos golpes e nas esquivas e sabia que minha direita saia muito pouco por gostar de evitar que se aproximassem. Não dava chance para que se aproximassem da minha base para não arriscar um soco surpresa, mesmo com uma envergadura menor.

 Vinha com a base fechada e tentava diminuir a distância, eu batia, saia e girava, fazia ele andar para cansar. Tinha mais fôlego e velocidade e ele mais força.

 Em um desses giros, o cara perdeu o tempo da passada e aproveitei para entrar com um jab e direto que passou pela guarda e o fez balançar. Um cruzado veio em seguida, mas parei o golpe no meio do caminho. Não quis derrubar, a gente treinava esquiva juntos, era como um tipo de amizade. Continuamos enquanto alguém dizia ao lado: ficou com pena? Era pra ter derrubado. Negou a mão porquê? Ignorei, me pareceu a coisa certa a se fazer.

 Semanas depois, um treino tático normal. O professor dizia: nada de força, apenas joga os golpes e aprende as saídas, outro dia a gente faz luva. Era apenas um treino sem força e eu tinha poupado ele, mas alguma coisa estava esquisita. Os socos dele não pareciam apenas um treino. Já não se movimentava tanto quanto da última vez, tentava encurtar a distância, mas cuidava do centro do guarda por saber que eu poderia usar isso contra ele. E por saber que eu evitava ser golpeado e era péssimo em responder um cruzado mais baixo, na primeira oportunidade mandou um o mais rápido que pôde.

 Um momento de excesso de confiança e descuido, acordei alguns segundos depois com meu professor me segurando.

 A última coisa que lembrava era de pendular errado, ele diminuir a distância e: BANG!

 Antes de levantar o olhar senti dois socos na cabeça, me pareceu um jab e um direto. Depois, aquele mesmo cruzado que eu guardei antes, voltou com tudo no meu queixo.

 O cara não teve piedade.

 Ninguém tem.

 A vida não tem,

 As pessoas não tem.

 Dali em diante, a guarda nunca mais esteve baixa,

 Não mais acreditei que seria poupado de qualquer forma.

 Bloqueava, mas não tentava o pêndulo,

 Não confiava que iriam pegar leve mesmo em treinos

 E,

  Mais ainda,

 Nunca mais parei de bater enquanto ainda estivessem de pé.

 Aquele soco me ensinou isso,

 Essa era a noção de justiça do mundo.

Por WENDELL ALMEIDA

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