Saudações caros(as) leitores(as)!
É com enorme satisfação que começo a esboçar sobre esse tema que há tempos tenho o desejo de abordar aqui na coluna musical da nossa amada revista – a música e a poesia. Creio que seja prudente, de antemão, deixar claro que o tema é extremamente profundo e que também traz diversos desdobramentos. Logo, dividirei este artigo em pelo menos duas partes, quiçá com uma terceira que porventura possa de alguma forma vir a ser uma “conclusão”.
Essa ressalva que descrevi no primeiro parágrafo se deve muito ao fato de que “poesia” se tornou algo muito além de um gênero literário. Como “poesia” além da conceituação clássica de ser a arte de compor através de versos, um modo de expressão artística caracterizada pelo uso de regras, de sons ou de estruturas sintáticas específicas, bem como o gênero literário correlato, o termo “poesia” ao longo do tempo também assumiu o sentido figurado de ser a característica do que se define pela beleza e pela sensibilidade – a poesia na fotografia, na música e etc.
Já a música, até pouquíssimos anos atrás e de maneira extremamente resumida, sempre esteve associada à combinação ordenada e racional de sons, sendo o som musical uma emissão vibratória, com frequência bem definida, capaz de ser captada pelas limitações fisiológicas do ouvido humano. Também por meio desta definição, ainda que simplória, podemos nos remeter a ideia de instrumentos musicais afinadíssimos e bem tocados por músicos, que passaram anos num conservatório musical, aperfeiçoando-se no instrumento escolhido. Já na contemporaneidade a música assimilou novos significados e o que era considerado ruído, hoje entende-se também como música, o que faz com que o conceito de música se torne mais amplo.
Dessa forma, quando pensamos em música segundo o conceito contemporâneo, podemos afirmar que a música sempre existiu eventual e aleatoriamente na natureza. Os sons produzidos pela natureza transmitem sentimentos e energias às pessoas, que param para observar e escutar o grande musical produzido pela natureza, como já escrevi em artigos anteriores aqui da nossa revista. O som do vento cortando o ar e balançando as folhas das árvores; o som das águas calmas de um riacho ou o barulho de uma corredeira e de uma linda cachoeira, o som dos mais variados pássaros, os animais que vivem nas matas e que utilizam diferentes sons para se comunicarem, no mar as baleias e os golfinhos também emitem sons e se comunicam por meio deles. A natureza oferece música graciosa e linda que nem sempre as pessoas sabem apreciar. A natureza além de musical, é poética, o ambiente e tudo que envolve o universo natural são poético-musicais. O homem como ser integrante da natureza também é um ser musical nato.
A arte tem servido ao ser humano para expressar seus sentimentos, sendo a música, a mais popular das artes. Para fazer música basta abrir a boca e cantar, bater palmas ou pés, assobiar ou murmurar; ao lembrarmos da infância quando a mãe e/ou o pai cantavam cantigas de ninar, e os bebês tentam reproduzir a música, mas só se emitem ruídos, esses ruídos são as primeiras músicas cantadas, ou pelo menos, as primeiras tentativas musicais. A criança, quando adquire suas primeiras palavras, é capaz de memorizar pequenos trechos e melodias e é neste momento que a música se torna uma grande aliada da educação, pois, através de letras e melodias de fácil assimilação para a criança, pode-se ensinar novas palavras, histórias e a cultura do lugar onde se vive. As cantigas de roda e as parlendas, por serem fáceis de cantar são aprendidas facilmente pelas crianças, que além de aprenderem a se divertir com elas, também de maneira intrínseca são apresentadas ao universo da música e da poesia.
Como um grande exemplar neste sentido, cito o poema musical “A Casa” do grandioso poeta Vinícius de Moraes, que além deste poema musical também escreveu diversas outras músicas e poesias com temas infantis que marcaram várias gerações e que ainda hoje são muito utilizadas pelos educadores, sejam eles professores ou não.
A CASA
Era uma casa
Muito engraçada
Não tinha teto
Não tinha nada
Ninguém podia
Entrar nela não
Porque na casa
Não tinha chão
Ninguém podia
Dormir na rede
Porque na casa
Não tinha parede
Ninguém podia
Fazer pipi
Porque pinico
Não tinha ali
Mas era feita
Com muito esmero
Na rua dos Bobos
Número zero.
Percebemos a capacidade de desarticulação do simples, do trivial na temática da canção. As considerações a respeito da casa, de tão absurdas, começam a perder a ligação e a referência inicial, incitando a imaginação e a criatividade infantil.
Assim, com os devidos esclarecimentos iniciais e um esboço de referência músico-poético, vamos então começar a dialogar entre a música e a poesia. Nesta primeira parte do artigo, vou me limitar, focando na história e algumas primeiras conceituações. Uma frase creditada ao grande compositor Ludwig van Beethoven sempre me chamou a atenção no sentido extenso da música e da poesia “A música é o vínculo que une a vida do espírito à vida dos sentidos. A melodia é a vida sensível da poesia”.
As origens da união entre a música e a poesia se dão em tempos longínquos. Apesar de serem expressões artísticas que podem existir muito bem separadamente, a história nos mostra que a música e a literatura sempre caminharam juntas. Se voltarmos no tempo, mais especificamente para a antiguidade clássica, podemos lembrar da poesia lírica, onde instrumentos musicais acompanham todo o momento de declamação.
Um pouco mais à frente no tempo, podemos lembrar do trovadorismo, esse estilo que surgiu na idade média, muito marcado pelo teocentrismo, tendo Deus como o centro de tudo, trouxe consigo as cantigas trovadorescas, ou também conhecidas como provençais. Todos os poemas eram escritos como cantigas líricas, que falavam de amor e outros temas intrínsecos, ou as satíricas que, como o próprio nome define, satirizavam cenas do cotidiano; mas sempre com acompanhamentos musicais. A ópera renascentista também é um outro ótimo exemplo dessa mescla entre as duas artes, afinal, toda a narrativa escrita era contada de forma cantada.
Primeiras músicas
De acordo com inúmeros historiadores, as primeiras civilizações surgiram no Oriente Central, dentre elas os sumérios, assírios, hebreus, egípcios e outros. Assim sendo, é razoável supor que foram esses os primeiros a cultivar a música. Os sumérios eram bastante adiantados e já cultivavam a música. Sabe-se que possuíam um método de leitura musical baseado em letras, e que se utilizavam de instrumentos para acompanhar vocais em oitavas. É interessante destacar os sumérios, não somente por terem sido um dos primeiros povos, mas pela importância cultural que esse povo deixou de herança a outros povos como os caldeus e os assírios.
A maioria dos instrumentos que conhecemos até a atualidade teve sua origem com os sumérios. Por exemplo, a harpa, a lira, a tamboura (ancestral do alaúde, um tipo de guitarra acústica com braço longo), flauta, trompete, bumbo, tamborim, pratos e sinos.
Já para o povo Hebreu a música era sagrada, e tanto a música como a dança eram utilizadas em cerimônias religiosas. A fonte de pesquisa para os historiadores sobre os hebreus é a Bíblia Sagrada, e por ter sido um povo que se mudou constantemente e que foi escravizado várias vezes por outras civilizações ao longo da história, quase não existe material de pesquisa sobre a cultura deste povo.
Longe do intento de transformar o presente artigo em um ramo religioso de apreciação, mas por meio de curiosidade encontramos na Bíblia a primeira referência que se tem sobre música. No livro do Êxodo, capítulo 15 – Moisés havia libertado o povo hebreu, que era escravo no Egito e depois de atravessar o mar vermelho, Moisés então entoou um cântico:
Cantarei ao Senhor, porque ele manifestou sua glória.
Precipitou no mar cavalo e cavaleiros.
O Senhor é a minha força e o objeto do meu cântico;
Foi Ele quem me salvou.
Ele é meu Deus – eu o celebrarei;
O Deus de meu pai – eu o exaltarei. […]
(ÊXODO 15, 1b-2)
Nesse mesmo episódio, ficou conhecido um tipo de coro que é chamado nos meios musicais como canto antifônico (ou antifonal), isto é: um cantor entoa uma frase musical que é respondida pelos demais. Mais tarde, os cristãos também adotaram essa prática em suas cerimônias. Há ainda diversas outras citações bíblicas com cânticos e indicação de instrumentos.
Os egípcios são um capítulo à parte. A civilização egípcia é uma das mais antigas do mundo, datando cerca de 3.200 a.C. Assim como para os hebreus, os egípcios também tinham na música um dos elementos principais em seus rituais religiosos, sendo que a música era elemento obrigatório em cerimônias religiosas, festas e comemorações nacionais.
Foram os egípcios os primeiros a utilizar o mais natural dos instrumentos: a mão. Este fato pode ser observado nas gravuras murais deixadas em suas antigas construções como, por exemplo, as pirâmides. O Egito recebia estudantes de outros povos para o aperfeiçoamento de suas técnicas. No Egito a música era também utilizada na educação dos jovens e recomendada pelos governantes.
Na Grécia, berço da civilização e da cultura ocidental, os gregos deram duas grandes e distintas contribuições à história da música: uma delas tem um conteúdo místico, enquanto a outra tem fundamento altamente racional. Os gregos utilizavam-se dos mitos para explicar os acontecimentos da humanidade e da natureza. A palavra música, de origem grega, tem seu significado neste contexto mítico helênico, pois música significa “a arte das musas”. Cada arte tinha a sua musa inspiradora, sendo elas um total de nove: Calíope (da poesia épica), Clio (da história), Erato (da poesia amorosa), Euterpe (da poesia lírica e da música), Melpómene (da tragédia), Polínia (dos hinos Sacros), Tália (da comédia), Terpsícore (da dança e do canto coral) e Urânia (da astronomia).
Podemos observar que a musa Euterpe era considerada como a musa da poesia lírica e da música, desta forma, podemos supor que para os gregos a música e a poesia também andam juntas, sendo uma espécie de irmãs, talvez gêmeas, ou melhor – siamesas. Como na Grécia tudo era explicado por meio dos mitos, a origem dos instrumentos musicais também assim era explicada – a Apolo se atribui a criação da lira; Orfeu, filho de Apolo ganhou uma lira de seu pai, e logo foi aprender a tocar com as musas. Diz a lenda que Orfeu tocava muito bem, encantando todos os animais que o ouviam. Os extremos da lenda diziam que até os rios paravam de correr para ouvi-lo. É devido a Orfeu que conhecemos o canto orfeônico ou orfeão.
Os gregos também conheciam instrumentos como: tambor, tímpano, sistro e triangulo. Pitágoras desenvolveu a lira de oito cordas e descobriu a relação matemática dos harmônicos, dedução essa que ainda hoje é base dos instrumentos modernos de corda como o violão, piano, violino, entre outros. A música na Grécia estava presente em todas as manifestações do povo e era considerada fundamental na educação dos jovens.
Do grego também herdamos a palavra orquestra, de orkestiké, que era o local onde se realizavam as danças e apresentação dos corais no teatro grego. Quando em Veneza, foi inaugurado o teatro São Cassiano, os venezianos denominaram de “orquestra” o local reservado para os músicos.
Outro elemento fundamental na música grega era o ritmo, que segundo o poeta Mário de Andrade tinha uma função socializadora. Isso vale não somente para o povo, mas também para a união com as outras artes. Como a música não acontecia isoladamente, estava sempre vinculada à poesia e à dança e o elemento de ligação sempre foi o ritmo.
É imprescindível também pontuar que escolhi apenas essas poucas civilizações com registros ou referências mais antigas para exemplificar e conceituar este artigo. A música está presente em todos os povos da humanidade desde sempre. O cântico músico-poético também, se arrastando pelas diversas etnias do continente africano, americano, europeu, na Ásia, Oceania e Oriente – enfim, no mundo inteiro.
Esta é só a primeira parte do tema que, por ora, encerro neste presente artigo. Espero que tenham gostado. Aguardo o retorno de vocês e trarei as partes subsequentes nas próximas edições aqui da revista.
Como de costume, deixarei como apêndice deste artigos três poemas que simbolizam (e muito) a música e a poesia.
Até uma próxima oportunidade!
Abraços fraternais,
Rafael Pelissari
MÚSICA
a Pedro Nava
Uma coisa triste no fundo da sala
Me disseram que era Chopin.
A mulher de braços redondos que nem coxas
Martelava a dentadura dura
Sob o lustre complacente.
Eu considerei as contas que era preciso pagar,
os passos que era preciso dar,
as dificuldades…
Enquadrei o Chopin na minha tristeza
E na dentadura amarela e preta
Meus cuidados voaram como borboletas.
(Carlos Drummond de Andrade. ‘Alguma Poesia’ in Obra completa)
DEBUSSY
Para cá, para lá…
Para cá, para lá…
Um novelozinho de linha…
Para cá, para lá…
Para cá, para lá…
Oscila no ar pela mão de uma criança
(Vem e vai…)
Que delicadamente e quase a adormecer o balança
— Psio… —
Para cá, para lá….
Para cá e…
— O novelozinho caiu.
(Manuel Bandeira, ‘Carnaval’, in Estrela da vida inteira)
CANÇÃO DO CAMINHO
Por aqui vou sem programa,
sem rumo,
sem nenhum itinerário.
O destino de quem ama
é vário,
como o trajeto do fumo.
Minha canção vai comigo.
Vai doce.
Tão sereno é seu compasso
que penso em ti, meu amigo.
— Se fosse,
Em vez da canção, teu braço!
Ah! mas logo ali adiante
— tão perto! —
acaba-se a terra bela.
Para este pequeno instante,
decerto,
é melhor ir só com ela.
(Isto são coisas que digo,
que invento,
para achar a vida boa…
A canção que vai comigo
é a forma de esquecimento
do sonho sonhado à toa…)
(Cecília Meireles. ‘Vaga música’, in Obra Poética)
Por RAFAEL PELISSARI