RECANTO DAS CULTURAS TRADICIONAIS – Interculturalidade e Decolonialidade: a virada cultural pela resistência

RECANTO DAS CULTURAS TRADICIONAIS – Interculturalidade e Decolonialidade: a virada cultural pela resistência

1.Introdução

O modo de colonização em diversos continentes a exemplo da América do Sul, África e Austrália deixaram marcas indeléveis que refletem ainda hoje nas estruturas econômica, política e cultural.  As velhas ou novas roupagens dessas construções estão longe de romper com estereótipos culturais. Esses continentes compartilham alguns traços semelhantes devido às estratégias e práticas comuns empregadas pelos colonizadores europeus durante a Era das Explorações e do Imperialismo. Buscaram explorar novas terras, recursos naturais e rotas comerciais. Isso frequentemente envolveu a conquista militar das populações locais e o estabelecimento de domínio político e territorial. A criação de várias colônias nas mais diversas regiões desses continentes foram caracterizadas pela imposição da cultura colonizadora, sistema político e estrutura social sobre as populações nativas. Elas serviam tanto como pontos de extração de recursos naturais bem como mercados para produtos manufaturados europeus. As principais motivações para a colonização era o acesso e a exploração de recursos naturais, como minerais, terras férteis, madeira e outros recursos valiosos. Isso muitas vezes levou à exploração intensiva desses recursos à custa das populações locais. Exploravam a mão de obra local, por meio da escravidão e trabalho forçado em plantações, minas e indústrias. As fronteiras para dividir as terras colonizadas eram arbitrárias, na maioria das vezes sem considerar as fronteiras étnicas, culturais ou históricas das populações locais. Isso levou a conflitos étnicos e políticos duradouros em muitos países e regiões.

Na maioria das vezes, os colonizadores impuseram sua própria cultura e religião sobre as populações nativas, através da conversão forçada, da imposição de sistemas legais e educacionais que resultaram na destruição ou marginalização das culturas locais.

 

  1. Consequências da colonização e a virada cultural pela resistência

Pode-se afirmar que o processo de colonização cultural trouxe consigo consequências negativas. Um desses efeitos foi a sucessiva perda de identidade cultural de grupos colonizados, sobretudo no que se refere à língua, costumes, tradições, crenças e práticas culturais únicas.  Isso resultou, em muitos contextos, em perda de diversidade cultural e diminuição da riqueza cultural global. Na maioria das vezes resultou, também, em desigualdades estruturais e a consequente homogeneização cultural, onde as diferenças entre grupos são apagadas em favor de uma cultura dominante globalizada. Muitas vezes levou à dependência do grupo colonizado em relação à cultura dominante em áreas como economia, educação, mídia e entretenimento. Esse processo comprometeu a autonomia e capacidade de autodeterminação de muitos povos.

Ao longo da história da colonização cultural europeia é possível registrar movimentos de resistência nos quais os membros da cultura colonizada buscam preservar e revitalizar sua própria identidade cultural. Isso inclui esforços para revitalizar línguas nativas, promover práticas culturais tradicionais e rejeitar a influência cultural dominante. São inúmeros os conflitos entre diferentes grupos, especialmente quando há tensões decorrentes da imposição de valores, normas e práticas culturais. Eles se manifestam em formas de protestos, movimentos de independência ou até mesmo violência.

Os historiadores culturais têm se dedicado a discutir diferenças, debates, conflitos bem como tradições compartilhadas. Samuel Huntington tem sustentado a ideia de que desde o fim da guerra fria as distinções culturais têm gerado um “choque de civilizações” que se sobrepõem à política e à economia. Podemos chamar esse fenômeno de virada cultural, manifestada pela crescente procura de outros significados para práticas e representações culturais. O surgimento e a popularidade de expressões tais como: “cultura do medo” “cultura dos adolescentes” ‘” cultura corporativa” “guerras de cultura” mostra a força dessas mudanças de perspectivas.

Nestor Garcia Canclini, intelectual latino-americano tem se dedicado a estudar os conflitos culturais através das transformações da vida cotidiana nas grandes cidades e a reestruturação da esfera pública que tem como foco as indústrias de comunicação e as barreiras culturais nas formas de solucionar conflitos, e as diferenças multiculturais agravadas com as guerras, a fome, e as desigualdades.

 

Canclini argumenta em seus estudos que os conflitos culturais são frequentemente discutidos no contexto da globalização como resultado da homogeneização cultural. É pouco discutida a complexificação e a intensificação desses conflitos culturais. Enfatiza a ideia de hibridização cultural, na qual diferentes culturas se encontram, se mesclam e criam formas híbridas de expressão cultural. À medida que diferentes culturas interagem, surgem novas formas de identidade cultural que não se enquadram em categorias rígidas. Os bens culturais circulam em um contexto globalizado e essa circulação pode levar a tensões e conflitos entre diferentes grupos. Questões como a apropriação cultural e a comercialização de elementos culturais tradicionais podem promover quanto restringir a diversidade cultural. As políticas culturais devem reconhecer e valorizar a diversidade cultural e proteger os direitos das comunidades culturais marginalizadas. Não pode existir mais a homogeneização cultural em um mundo globalizado. As identidades podem entrar em conflito propiciando condições para que os indivíduos possam negociar sua identidade e pertencimento em um contexto de múltiplas influências. Em um mundo cada vez mais interconectado aumentam os conflitos culturais colocando em pauta a importância de reconhecer e valorizar a diversidade cultural e de refletir sobre o movimento da decolonialidade.

 

  1. O movimento do pensamento decolonial 

Esse movimento da decolonialidade pretende se desprender da lógica da homogeneização cultural, da possibilidade de existência de um único mundo pretendido pelo lógica da modernidade capitalista. Assume importância como pensamento capaz de questionar e discutir a Modernidade pelas categorias de transmodernidade, geopolítica do conhecimento, colonialidade do poder e diferença. Ele abre-se para uma pluralidade de vozes e caminhos para pensar a interculturalidade. Trata-se da busca pelo direito à diferença e a uma abertura para um pensamento complexo.  Parte da ideia de desfazer as estruturas e sistemas coloniais que foram estabelecidos durante os períodos de colonização europeia em várias partes do mundo.

 

A descolonização é um processo complexo, multifacetado e em curso que pode ocorrer em diferentes níveis: político, econômico, social, cultural e psicológico. As principais dimensões e aspectos do conceito de descolonização envolveu a conquista da independência política por parte de nações colonizadas. Isso muitas vezes ocorreu através de movimentos de libertação nacional, revoluções e resistência armada contra o domínio colonial. A busca pelo princípio da autodeterminação, que afirma o direito dos povos colonizados de determinarem seu próprio destino político, econômico, social e cultural, livre de interferência externa.

A descolonização muitas vezes envolve questões de reparação histórica e justiça para os povos colonizados, incluindo o reconhecimento dos danos causados pela colonização, a restituição de terras e recursos, e a responsabilização por injustiças passadas. Isso pode envolver a reforma de instituições políticas, econômicas e sociais, bem como a promoção da igualdade e da justiça social. No processo de decolonialidade implica, dentre outras dimensões o resgate e a valorização das identidades culturais e conhecimentos tradicionais que foram suprimidos ou marginalizados durante o período colonial. Isso pode envolver esforços para revitalizar línguas indígenas, práticas culturais e sistemas de conhecimento; a superação de estereótipos e preconceitos arraigados que foram perpetuados.

 

4- Considerações finais

O pensamento decolonial chega em um momento onde a sociedade reconhece a necessidade de conectar liberdade e igualdade. O indiano e ganhador de Prêmio Nobel “Amartya Sen” defende, com muita propriedade, a tese, de que um processo de expansão de liberdades humanas não pode ser identificado com o crescimento do Produto Nacional Bruto (PNB), aumento de rendas pessoais, industrialização, avanço tecnológico ou modernização social e reconhecimento da decolonialidade. Todos esses elementos são essenciais, mas a expansão das liberdades depende de outros elementos que possam ser desfrutados pelos membros da sociedade, como por exemplo, a qualidade dos serviços de educação e saúde, a garantia dos direitos civis e, sobretudo a liberdade de participação de discussões e averiguações nos espaços públicos democráticos.  É importante assinalar que o termo liberdade comporta o uso do plural, uma vez que, as liberdades são diversas em função de cada contexto cultural e a avaliação sobre a privação das liberdades vai depender da fonte de autoridade e legitimidade utilizadas como valor básico. O desenvolvimento social, então, vai envolver a necessidade de se aquilatar os requisitos de desenvolvimento com base na remoção das privações de liberdade que podem afligir os membros de cada sociedade particular. O pensamento decolonial pode ganhar força se acoplado à ideia de pobreza como escassez de renda é pouco expressiva para se falar em liberdade no contexto da sociedades colonizadas. A liberdade como força simbólica que move a capacidade humana de “ser mais” é refletida no conjunto de condições e alternativas reais e factíveis dentre as quais a pessoa pode escolher para sua sobrevivência. Há evidentemente pesos avaliatórios diferentes para as escolhas pessoais, entretanto eles não podem ser medidos somente pela escassez de renda, mas, sobretudo pelo conjunto de informações que cada pessoa possui para inserir-se no espaço social. As identidades culturais não ganham força em espaços onde a pobreza traz privação de capacidades básicas para o exercício da liberdade, e a falta de acesso aos bens culturais, simbólicos e econômicos fundamentais ao exercício da cidadania, enfraquecendo a luta relacionada ao princípio da autodeterminação, que afirma o direito dos povos colonizados de determinarem seu próprio destino político, econômico, social e cultural. Para sustentar o discurso da decolonialidade é preciso que as liberdades sejam meios que instrumentalizam a capacidade de coesão social: liberdades políticas, econômicas, oportunidade social, garantias de transparência e segurança protetora.

 “Amartya Sen”

A concepção de liberdade que se adequada ao propósito desta discussão transcende o meramente útil em termos econômicos e não se apoia no que se chama atualmente de ações afirmativas para reparação histórica e justiça para os povos colonizados. A construção da igualdade formal (jurídica) se pauta na luta pelo fim de toda forma de privação de liberdade política ou civil que restrinjam a expansão das capacidades humanas tirando das pessoas a oportunidade de conduzir suas vidas participando de decisões cruciais concernentes a assuntos públicos de todas as ordens. A privação de liberdades gera desigualdades e elas vão surgir todas as vezes que houver a violação do direito ao emprego, ao voto, à educação, à possibilidade de escapar da morte prematura, morbidez ou fome involuntária. Assim, ver a liberdade de modo mais amplo é uma questão deveras complexa, mas exige de quem se debruça sobre o tema da diversidade cultural (interculturalidade) um esforço considerável.

O fortalecimento dos processos de coloniais democráticos, em todas as sociedades parece ser o fundamento necessário para a reflexão sobre a interculturalidade, uma vez que não é possível pensar o exercício da cidadania numa sociedade cindida entre os diversos interesses. Negros, mulheres, camelôs, banqueiros, jovens, crianças, intelectuais, gays e indígenas são atores de um mesmo espetáculo: a condição humana. Assim, é preciso enveredar pela compreensão teórica deste espaço para justificarmos a defesa da liberdade e da igualdade como pilares para construção de uma cultura humanizada.

Por EDNA BRENNAND

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