No Brasil, dia primeiro de setembro é data em que se comemora o Dia da Bailarina. Na verdade, a escolha acompanha o calendário do Dia do Profissional da Educação Física e partilharei com vocês uma discussão que me acompanhou (e incomodou) por toda vida.
Vejamos… arte e atividade física são coisas distintas, ainda que a arte da dança se faça com o corpo e no corpo. A faculdade de educação física não forma bailarinos. Aprendi ballet clássico com quem dançava ballet clássico e não apenas com quem havia estudado a teoria. Ser bailarina implica em (e supera) conhecer história da dança, enredo dos repertórios, boas noções de anatomia, e a experimentação dessa cultura em movimento no corpo. Assim foi minha formação.
Por isso, reluto em aceitar bem quando vejo um mercado em torno da dança contratando “bailarinos(as)” que não o são; ou, ainda, promovendo ensaios fotográficos com trajes e sapatilhas de ballet utilizados de modo equiparado a uma fantasia, via de regra resultando imagens distorcidas e de mau gosto.
Lembro com carinho das primeiras bolhas, das unhas que perdi, e de ter alguma satisfação com alongamentos doloridos: “Se não está doendo, não está funcionando”, eu ouvia da professora. Trocando em miúdos a arte é um atravessamento, sentimos na carne.
É inesquecível a cena da mestra Toshi Kobayashi parada diante de mim, de braços abertos, repetindo: “Fria! Bate cabeça!” para me arrancar 16 fouettés. Para os leigos, esse último é o nome de um giro técnico bastante específico, um tipo de pirueta, das mais difíceis no ballet. E “bater cabeça”é a forma usual de designar o movimento rápido de rotação da cabeça que orienta e confere eficiência ao giro.
No final dos grandes ballets de repertório já são esperados os tais giros chamados fouettés. É a hora da solista mostrar a que veio! A primeira bailarina a sequenciar esse giro sobre uma perna só na quantidade de 32 repetições foi a italiana Pierina Legnani, na Coda do Ballet Cinderela de Lev Ivanov e Enrico Cecchetti, em dezembro de 1863. Foi uma surpresa para o público. Pierina foi também a primeira a ser intitulada “Primma Ballerina Assoluta”, título antigo atribuído às bailarinas que se destacavam.
Pierina abriu caminho para que outras a seguissem. Mostrou que era possível e fez com que as próximas trabalhassem para alcançar a marca dos 32 giros. A tradução do termo fouetté é “chicoteado”, uma referência ao movimento de lançamento que a perna faz durante o giro, desenhando uma chicotada no ar.
Voltando ao meu ponto de partida: a bailarina é aquela que conhece o chicote; é aquela para quem ele diz algo; é a que experienciou essa cultura. Arte não é teoria. Arte se forja no chicote da arte: dói e é sublime!
A mestra Toshi (que tentava me arrancar os fouettés), falecida em 2016, formou muitos bailarinos, foi jurada e integrante do Conselho Consultivo do Festival de Dança de Joinville e ministrou cursos para bailarinos da Cia Jovem da Escola do Teatro Bolshoi, única unidade fora da Rússia – em Joinville. Tinha pouca altura, mas se agigantava no vigor com que conduzia a extração da dança na melhor entrega do corpo de bailarinos e bailarinas que ensinava. Dona Toshi (como a conheci de pequena) tinha olhos de fouetté… uma verdadeira chicotada aquele olhar.
É dessa transmissão que falo. É cheia de vida, de história, do imponderável que a arte proporciona e que não se apreende nos bancos de uma faculdade. Faz parte da cultura, daquilo que se cultiva e que é transmitido historicamente por meio de códigos e padrões de significados …tradição.
A palavra vem do latim traditio e significa entregar, passar adiante. A dança faz elo entre as gerações. Há um processo de escolha, apropriação e identidade. É preciso ter algo em si, para poder entregar.
Dentro dessa lógica, cada povo ou nação singulariza uma traço próprio que expressa em (suas) danças. O tango argentino, o flamenco espanhol, o samba brasileiro, etc.
O universo é vasto e a diversidade se impõe, de modo que um povo não dança uma só dança. Aqui, em terras tupiniquins de onde escrevo, vamos do ballet clássico, passando pelo contemporâneo, jazz, stiletto, axé, funk, samba, e há muito mais. Só em matéria de samba, podemos destacar o choro, o samba percussivo, o samba de roda, o samba no pé, o samba de gafieira, e tantos outros.
A bailarina Helen Ribeiro, que quando da última edição da nossa revista estava imersa em estratégias de arrecadação de fundos para poder levar sua gafieira ao Festival de Dança de Joinville de julho, conseguiu os valores necessários para estar lá. Ela é nossa entrevistada dessa vez e conta um pouco do que foi a experiência, bem como o que é ser bailarina no Brasil.
Convido-os a deixarem que as palavras façam a condução e que se deixem dançar e levar pelo texto, numa imersão até os bastidores dessa arte no nosso país na contemporaneidade, sob a perspectiva de quem trabalha por ela. O roteiro é de uma menina que sonhou, que se arriscou em um universo rigoroso quanto às exigências de um corpo padrão (Helen conhece o chicote!), que abraçou a identidade brasileira do samba de gafieira e que segue realizando.
Antes, contudo, às companheiras bailarinas, deixo uma breve mensagem: Dançar é uma experiência e desejo um feliz primeiro de setembro (com sabor de todo dia) para todas de nós que nos permitimos vivê-la: que não nos faltem eixo, linhas alongadas, colo de pé, e que resistam as unhas!
Por DANIELA LAUBÉ