Saudações caros(as) leitores(as)!
Vos agradeço imensamente pela leitura e por todo carinho que recebo através de vossas mensagens. É uma grande alegria e enorme satisfação poder fazer parte deste magnânimo projeto de disseminação de arte e cultura que é a revista The Bard. No artigo desta última edição do ano da nossa amada revista, vos escrevo um pouco sobre o poder da canção de protesto. Já discorri em outros artigos de edições anteriores aqui da revista acerca do poder que a música possui na psique humana, bem como seus desdobramentos no campo físico, num sentido mais terapêutico. No presente artigo, entretanto, quero vos falar sobre a influência da canção nas nossas vidas e na sociedade.
Já de antemão é necessário contextualizar e separar música de canção. O neologismo que impera há tempos descreve que música e canção são a mesma coisa, sendo utilizada a expressão “música instrumental” para se referir à música que não possui letra, porém, teórica e tecnicamente não é bem assim – a música é constituída por três pilares isolados, interdependentes e obrigatórios, sendo estes a melodia, a harmonia e o ritmo. Não cabe aqui o aprofundamento acerca destes aspectos, mas sim, que a letra, não é parte integrante da música, vide grandes obras da dita música erudita e suas diferentes eras e movimentos. Não que não houvesse letra em obras clássicas da música, mas eis aqui, quando separamos a música da canção.
Canção é um texto musicado, podendo ser um poema ou qualquer outra composição textual na qual estejam inseridas palavras, passando uma ideia, uma mensagem. A ordem em que a canção é criada não é importante, quer seja se o texto foi escrito e depois musicado, ou se o texto fora criado inspirado em uma música já existente.
Na música, aqui referida como “música instrumental”, o teor é extremamente subjetivo, quero dizer, quando ouvimos uma música na qual não há uma mensagem clara e direta sendo transmitida, as sensações e emoções que a mesma nos causam variam de pessoa para pessoa. É curioso como nos emocionamos com a música sem letra, parece que a essa “mensagem” conversa diretamente com a nossa alma.
Já na canção, a música continua se comunicando conosco, vide canções que ouvimos e estão em algum outro idioma desconhecido, na qual não compreendemos aquela mensagem direta, mas que o conjunto melodia, harmonia e ritmo (a música) somado a melodia vocal nos agrada sem necessariamente ter um porquê. Porém a canção possui um poder ainda mais amplificado quando a letra se comunica diretamente conosco nos deixando uma mensagem clara, assim sendo, objetiva.
Toda e qualquer forma de arte é a força de expressão de seu criador, o artista, e, a mensagem que está sendo transmitida através daquela arte é o destino final da criação.
A mensagem, a ideia transmitida através da arte, quando feita de maneira direta e inteligível, é tal qual uma semente quando bem adubada e nutrida: cria raízes e gera frutos – amplia a nossa visão do mundo, da vida, expande nossa consciência e nos faz pensar – e principalmente, questionar.
Assim sendo, também se mostra evidente a importância da leitura. (Vos deixarei ao final do artigo um vídeo sobre esse tema)
Ao longo de tantos e tantos séculos, muitas canções vêm nos trazendo suas mensagens, seja na música de cunho religioso, ideológico, nas músicas de campo filosófico e/ou social e etc. Diversos compositores, escritores e arranjadores, se utilizam da mensagem direta através canção e da música para nos trazer reflexões e comunicar acerca dos mais variados temas.
O poder que a canção possui é irrestrito – podemos ser transportados para o passado quando uma determinada canção e sua mensagem nos lembra de alguém, de um momento específico de nossas vidas ou até mesmo uma situação específica; podemos ficar por horas, dias e até meses refletindo o teor da mensagem transmitida; criamos identificação de grupo quando a canção se desdobra acerca de um período específico; as lutas, bandeiras e protestos, também transmitidas na forma de canção, ganham “corpo” e “alma” que mobilizam e enfatizam a causa – enfim, como pode observar o(a) nobre leitor(a), a canção tem o peso e a força que muitas vezes uma revolução necessita. Me refiro aqui, é claro, à uma revolução sem armas, uma revolução baseada na artes, na cultura, no despertar da consciência.
Poderia citar inúmeras canções que propõe essa revolução, se imortalizando e disseminando suas sementes por todo lado, mas não haveria espaço para tal sumário.
Canções como as feitas durante o regime militar no Brasil, por grandes nomes da nossa música, não somente refletem aquele momento vivente, como propunham uma mudança, uma revolução social, estrutural, sendo que em inúmeros casos a mensagem fora feita de maneira subliminar para superar a censura vigente. Um grande exemplar é a canção “Cálice” de Chico Buarque com participação de Milton Nascimento do álbum “Chico Buarque” (1978). A utilização de uma paronomásia – Cálice e o “Cale-se” se referindo à censura: “Pai, afasta de mim esse cálice (cale-se)”.
Canções que despertam em nós uma nova forma de pensar, ou até mesmo, uma perspectiva muito distinta da que já tínhamos a respeito de um determinado assunto, são verdadeiros exemplos do poder que a canção carrega.
Num âmbito social, a canção também traz consigo o grito de grupos marginalizados pelas elites e pelos governos. A descrição de uma rotina massacrante, da perseguição, do preconceito, da pobreza, da violência dentre tantos outros temas, ganham na canção a voz e o alcance amplificado para as massas. Assim como acontece com o rap. Nascido na Jamaica na década de 1960, teve um enorme impulso quando jamaicanos imigrados levaram o estilo para os EUA no começo da década de 1970, o qual ganhou força e, mais especificamente nos bairros pobres de Nova Iorque, jovens negros e imigrantes da América Latina se utilizaram do estilo para alcançarem seus lugares de fala.
No Brasil, o rap também teve enorme vertente e possui grandes nomes, como os Racionais Mc’s, por exemplo. Na canção “Capítulo 4, Versículo 3” do álbum “Sobrevivendo no inferno” (1997), a letra estampa o preconceito e a perseguição policial contra jovens negros da periferia. Na abertura traz números que deflagram a violência: “Sessenta por cento dos jovens de periferia sem antecedentes criminais já sofreram violência policial; a cada quatro pessoas mortas pela polícia, três são negras; nas universidades brasileiras, apenas 2% dos alunos são negros; a cada quatro horas, um jovem negro morre violentamente em São Paulo. Aqui quem fala é Primo Preto, mais um sobrevivente.”
Claramente, as canções românticas e de amor, igualmente cumprem seu papel transformador e revolucionário. A canção de George Harrison “Within You Without You” do álbum “Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band” (1967) dos Beatles, reflete sobre o poder transformador do amor numa clara alusão a visão hinduísta do mesmo: “Estávamos falando sobre o espaço entre todos nós, e as pessoas que se escondem atrás de uma parede de ilusão, nunca se tocam da verdade. Quando já é tarde demais, quando elas morrem. Estávamos falando sobre o amor que todos poderíamos compartilhar, quando o encontrarmos, faremos o possível para que ele não se apague. Com o nosso amor nós poderíamos salvar o mundo, Se nós apenas soubéssemos. Tente perceber que está tudo dentro de você, ninguém mais pode fazer você mudar. E ver que você é realmente muito pequeno, e a vida flui dentro e fora de você.”
Dentre tantas e tantas canções que nos despertam para a vida e para o mundo, vou apenas citar mais uma. A canção/poema “Blowin’ in the Wind” do grandioso Bob Dylan. Uma canção de protesto que traz uma série de perguntas retóricas sobre a paz, a guerra e a liberdade. O refrão “The answer, my friend, is blowin’ in the wind” (literalmente “a resposta, meu amigo, está soprando ao vento”) é um verso impenetravelmente ambíguo: ou a resposta é tão óbvia que está direta, na lata, em nossa cara, ou é tão intangível quanto o próprio vento:
“Quantas estradas um homem precisará andar
Até que possam chamá-lo de homem?
Sim, e quantos mares uma pomba branca precisará sobrevoar
Até que ela possa dormir na areia?
Sim, e quantas balas de canhão precisarão voar
Até serem para sempre banidas?
A resposta, meu amigo, está soprando ao vento
A resposta está soprando ao vento
Sim, e quantos anos uma montanha pode existir
Antes que ela seja dissolvida pelo mar?
Sim, e quantos anos algumas pessoas podem existir
Até que sejam permitidas ser livres?
Sim, e quantas vezes um homem pode virar sua cabeça
E fingir que ele simplesmente não vê?
A resposta, meu amigo, está soprando ao vento
A resposta está soprando ao vento
Quantas vezes um homem precisará olhar para cima
Até que ele possa ver o céu?
Sim, e quantas orelhas um homem precisará ter
Até que ele possa ouvir as pessoas chorar?
Sim, e quantas mortes serão necessárias até que ele saiba
Que pessoas demais morreram?
A resposta, meu amigo, está soprando ao vento
A resposta está soprando ao vento” (Bob Dylan)
Por fim, o poder da canção, através da música que serve a letra como base harmoniosa, melódica e rítmica que a voz acompanha, e a própria letra, através da mensagem que se transmite pelo idioma, pela conjunção da arte musical e da arte das palavras (literatura), nessa arte mista, é o veículo que comunica à todos, independentemente de grau de instrução, arquétipos sociais ou faixa-etária; a canção, assim como a própria leitura, traz conhecimento e, ela mesma nos incita a querer aprender e conhecer mais. A leitura, a canção nos incita muitas vezes a compaixão ou a empatia de tantas vezes nos colocarmos no lugar do outro; ela incita o nosso instinto básico de criação, imaginação, fantasia e de querermos também nos expressar. Nos faz pensar, e, o pensar nos instiga muitas vezes a querer questionar o porquê determinadas coisas são como são e, não são, ou não poderiam ser diferentes. E o questionamento, como fim, nos faz, quem sabe, até mesmo querer reivindicar, seja lá o que for…
A verdadeira revolução começa de dentro para fora, na semente-ideia que semeada, germina e desperta tantas e tantas consciências. Seja a semente-ideia levada pelo vento através de um texto, um livro, uma canção…
“A verdadeira revolução não é a revolução violenta, mas a que se realiza pelo cultivo da integração e da inteligência de entes humanos, os quais, pela influência de suas vidas, promoverão gradualmente radicais transformações na sociedade.”
(Jiddu Krishnamurti)
Pois é assim:
na vida,
a cultura leciona;
a arte emociona;
e um povo que não lê,
não se expressa
nem questiona.
Como prometido no início deste artigo, abaixo vos deixo um vídeo que trata sobre a importância da leitura. Este vídeo é parte do programa piloto do Boteco Poético no canal do YouTube. Boteco Poético é um grupo literário fundado na cidade de São Paulo no ano de 2008. No canal, o programa traz recital de poesia, muita arte e reflexão, além de disseminar a arte e a cultura através do projeto de popularização e propagação de cultura. Conheça mais acessando o www.youtube.com/botecopoetico.
Espero que gostem!
Até uma próxima oportunidade,
Por RAFAEL PELISSARI