RECITA-ME – A Despedida De Um Arco-íris por Jonas Fortuni

RECITA-ME – A Despedida De Um Arco-íris por Jonas Fortuni

 Queridos amigos, vocês são o maior tesouro que pude obter durante toda a caminhada de minha vida. E sei que, vivendo oito dias ou oito décadas a mais, nunca encontraria algo mais valioso que a oportunidade de ter estado em suas companhias. Por isso, venho aqui hoje vos escrever por culpa de meus receios do futuro desse mundo lindo que, infelizmente, falha na solidariedade e empatia.

 Até o atual momento, eu pude desfrutar de uma vida tranquila e feliz (com suas conturbações, como qualquer outra. Mas sim: feliz). Contudo, não podemos fechar os olhos para a realidade na qual estamos inseridos. A sociedade dissemina ódio gratuito todos os dias e para todos os lados. Como bem sabem, eu possuo um arco-íris em minha essência e esse arco-íris acaba por se tornar um alvo.

 Observando o número gritante dos meus a morrer tragicamente em nosso país, começo a prever um provável destino horripilante para mim. Venho aqui hoje tentar prepará-los para o caso dessa probabilidade tornar-se fato. E sim, eu sei que estou sendo mórbido e posso estar assustando a maioria de quem estiver a ler esse texto. Principalmente se nessa maioria tenho moradia, recente ou há tempos, em seus corações.

 Talvez, queridos amigos, num dia qualquer do calendário, vocês acordem com o sol a raiar e o dia esteja com rosto de monotonia. Mas então vai haver uma mensagem ou um telefonema que vai abalar suas estruturas. Porque vai ser o dia em que vão receber a notícia que eu morri. Claro, é natural sofrer pela perda de alguém querido. Mas nesse caso a notícia será um pouco diferente: a notificação fúnebre se tratará do meu assassinato.

 Alguns de vocês nem vão querer saber dos detalhes, para não guardar na mente. Mas haverá aqueles que exigirão saber de tudo. Vai doer. Doer porque foi com aquela pessoa que esteve com vocês por vários momentos da vida. Doer porque foi alguém que vocês amavam. E saber dos detalhes da atrocidade é confirmar os fatos. É confirmar o sofrimento. É dor que não cabe direito no peito.

 Então imaginem, queridos amigos, saber que fui espancado até a morte por um grupo de cinco homens. Que a última companhia que tive em vida foi a de cinco pessoas que me demonstraram ódio. Que me quebraram os ossos, me deformaram a face, arrancaram de mim o meu próprio sangue; até nada mais restar além do olhar vazio da morte.

 Quem sabe um dia escutem falar que assistiram à risadas a minha pele queimar nas chamas. Que agonizei nos meus últimos suspiros. Que olhei ao redor procurando por ajuda e não a encontrei. Que nem mesmo um corpo restou para uma despedida digna.

 Ou quem sabe a notícia não tenha muito o que dizer: uma bala perdida. No peito. Na cabeça; facadas múltiplas até meus órgãos pararem de funcionar; asfixia por enforcamento. Uma corda, as próprias mãos; perseguição e atropelamento. Morto como um animal de estrada.

 Talvez eu tenha lutado pela minha vida (lamentavelmente sem êxito). Mantido em cativeiro por dias em condições precárias. Passando fome, sede, medo… tortura física e psicológica. Talvez eu tenha corrido dos homens que sequencialmente me espancaram. Ou talvez eu tenha tentado tirar as mãos da pessoa que me estrangulou antes dela conseguir me matar.

 A dor pode ser grande, queridos amigos, quando souberem que me profanaram o corpo antes do fim. Que me enfiaram objetos diversos no corpo e agiram como porcos em suas palavras sujas. Que, assim, ridicularizaram a minha forma de amar. Arrancaram de mim o que guardei a vida toda e só compartilhei com aqueles que me cativaram. Vai doer quando compreenderem que me trataram como se aqui dentro não houvessem sentimentos e sonhos que imploravam para viver.

 É possível que eu não tenha conseguido ser forte até o fim. Devo ter soluçado de tanto chorar, pois é certeza que não me faltaram dores. Dores que atravessam a pele até a carne viva. Dores na alma por ter algo tão bonito roubado de mim pelos meus próprios semelhantes. A dor de ver meus sonhos marcharem para longe sem nunca ao menos ter a chance de senti-los me tocar.

 Eu vou lamentar profundamente por tudo que ali perdi. Todos os abraços que ainda poderia ter ganhado. As risadas que poderia ter soltado na companhia daqueles que sempre tornaram minha vida mais especial. As lutas que poderia ter travado para tornar o mundo um lugar melhor. E vou ficar torcendo fortemente por todos aqueles que não poderei mais ajudar. Torcendo para que outras pessoas possam ajudá-los. Que alguém possa ampará-los.

 Nunca mais haverão comemorações para mim. Os aniversários que eu sempre detestava ir. O amor do clima de natal, em que eu tinha mais tempo para ver a todos. A virada de ano novo, conosco pedindo coisas melhores no ano seguinte e fazendo promessas para tentar fazer as coisas melhorarem. Nunca mais nada disso para mim. Nunca mais o sorriso esbanjado no meu rosto.

 E não vou poder ver como vocês escreveram o resto de suas histórias. Não vou poder estar lá para aplaudir as conquistas. Não poderei estar para consolar os fracassos. Não vou conhecer os filhos de vocês e poder chamá-los de sobrinhos. Quem sabe até ensiná-los sobre as coisas do mundo ou contar a eles histórias do nosso passado de aventuras. Não visitarei as novas casas de vocês para presenciar vossos recomeços. Estarei fora da vida de todos. Uma lembrança sempre associada à tragédia.

 Quanto aos que me tiraram de suas vidas, queridos amigos… os perdoem. Eles refletiram em mim o que lhes foi imposto. São outras pobres vítimas de um sistema excludente e perverso. Mataram-me, mas têm medo. Medo alimentado dentro de casa. Medo alimentado dentro da igreja. Medo alimentado dentro da escola. Medo de ser quem são, de demonstrar como estão. Perdoem os que me tiraram a vida para não mancharem minha lembrança com ódio também.

 Quero que lembrem de mim com amor. Com um sorriso no rosto. Quero que guardem consigo o meu desejo fervente de tonar o mundo um lugar melhor. Um lugar em que as pessoas sejam ensinadas a ser empáticos. Ensinadas a respeitar os outros, independentemente de qualquer quesito. Um lugar prazeroso de se viver, em que um bom amigo não precise deixar saudade antes do tempo. Em que o ódio não passe de um simples mito de um passado que não voltará.

 Então, amados amigos, deixo aqui o meu pedido final: ensinem seus filhos a amar antes mesmo de descobrirem o que é o ódio. Ensinem a seus filhos que o importante é ser feliz, sorrir, ter bons amigos… e ensinem o amor a todos que encontrarem pela frente. Vivam longas e boas vidas e não sofram por minha partida. Apenas permitam que as cores possam brilhar livremente pelo mundo e minha morte não terá sido em vão.

Por JONAS FORTUNI

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