Sarah estremeceu ao despertar, seu estômago se contraiu com o odor de urina. Com o rosto colado ao chão áspero e a visão embaçada, ela piscou repetidas vezes tentando dar sentido ao ambiente ao seu redor: uma parede azul, pontos coloridos cobrindo o chão e aquela cacofonia de sons que competiam entre si: vozes, gritos, risada, os agudos do que parecia uma buzina mesclados a batidas repetitivas.
Ela ergueu o corpo, colocando-se sentada. A cabeça girava, os músculos doíam. A sensação de estranheza tomava conta. Sarah mantinha o olhar baixo. Não sabia explicar o motivo, mas apenas de cogitar levantar a visão sentia uma angústia crescente tomar conta de si.
Sarah inspirou fundo, não podia ficar paralisada, tinha que enfrentar o que sentia. Ela olhou para cima. O céu claro e azul permeado de nuvens fazia as vezes de teto. Ela estava em um local aberto. Sua pulsação acelerou. Um local aberto. A constatação veio acompanhada de uma onda de pavor. Os músculos da garganta se retesaram, mãos invisíveis estrangulando-a. O vento quente batendo em seu rosto a oprimia. Ela não podia estar ali, precisava voltar para a segurança de um espaço fechado.
Desesperada, ela voltou a encarar o chão. Concentrou seus esforços em se acalmar, em respirar lentamente. Estava tão imersa em sua tarefa que só se deu conta do vulto se aproximando quando ele estendeu a mão em sua direção. Ela se encolheu. Pelos escuros cobriam os dedos, subiam pelo braço. Aquilo não era a mão de uma pessoa. Era a pata de um gorila. Sarah rastejou para trás até que suas costas se chocarem contra a parede.
— Tá drogada a vadia — o gorila disse enquanto se afastava.
Sarah se encolheu, apoiou a testa nos joelhos balançando-se para trás e para a frente. Um tremor a percorreu. O gorila. Ele havia falado com ela. Ela estaria sonhando? Não fazia sentido. Mas ela não tinha memórias de ter ido dormir. Afinal, do que ela se lembrava? Apertou os olhos. As memórias naquele momento eram voláteis, seu raciocínio quase tão embotado quanto sua visão. Tentou se acalmar, precisava que pensar, entender o que estava acontecendo. Entrar em pânico não ajudaria em nada.
O medo é uma reação natural ao ser humano, um instinto indispensável para nossa evolução como espécie.
Quando as palavras ecoaram em sua cabeça, Sarah sentiu o sangue se esvair de seu rosto. Tentou tapar os ouvidos, mas a voz continuava lá, seguia com seu discurso.
No entanto, quando esse medo se torna patológico, quando temos uma fobia, é necessária a intervenção médica para devolver ao indivíduo o controle de sua vida.
Intervenção médica. As palavras a alarmaram. Mesmo que não fosse capaz de identificar quem estava falando em seus pensamentos, uma certeza se solidificava em seu íntimo: estava em perigo.
Sarah se apoiou na parede azul para se levantar e foi então que percebeu que a superfície não era reta. Havia reentrâncias e pontos mais altos. A percepção veio como um estalo em sua cabeça. Aquele cheiro, era óbvio. Como ela pôde não perceber que estava encostada em um banheiro químico? Olhou para baixo, seus tênis estavam ensopados a calça jeans molhada até a altura dos joelhos. Ela levou a mão à cabeça. Era urina.
A náusea comprimiu seu abdômen. Sua mente conjurou as mais aterrorizantes imagens. Os germes. Eles estavam por toda parte, tomavam conta de seu corpo. Sarah os sentias rastejando em sua pele. As patas microscópicas se movendo por suas pernas. Subindo.
Seus membros formigavam, ela só podia estar em um maldito pesadelo. Precisava se lavar. Queria álcool, muito álcool. Ela esfregou as mãos nos braços repetidas vezes. As tropas de germes seguiam em sua escalada, num avanço brutal à procura da mais ínfima fissura por onde invadir seu corpo.
Sarah levou a mão à boca. Onde estava sua máscara? Ela não podia acreditar que estava na rua sem máscara em meio a uma pandemia. Ela arquejou, não havia como escapar. Ergueu a cabeça. Apesar da visão turva, pôde distinguir algumas silhuetas andando para um lado e para o outro. Sarah deu dois passos na direção contrária das pessoas tentado ignorar o próprio nervosismo.
O barulho havia aumentado, a vibração do som chegava até ela em ondas com o volume crescendo e diminuindo enquanto Sarah oscilava sem muito controle de seus movimentos. Ela tentou prestar atenção. Havia algo de familiar naquele som cadenciado, não havia? Apurando a audição, ela identificou palavras esparsas, algo relacionado a água e cachaça. Era uma marchinha de carnaval.
Sarah não teve tempo de processar a informação. Uma mão gelada agarrou seu braço.
— A moça tá passando mal. Me ajuda aqui, Marcelo — a mulher que a segurava gritou para alguém. — Toma, bebe isso.
A mulher aproximou o cilindro vermelho com um buraco no topo do rosto de Sarah.
Agora bebam o medicamento e acomodem-se. O experimento vai começar.
Aquela voz de novo. Mergulhada em uma nova onda de pavor, ela visualizou as agulhas, centenas delas. As pontas afiadíssimas perfurando seus braços; cutucando a procura de veias; coletando seu sangue; drenando sua vida; injetando substâncias desconhecidas nela. A vertigem escureceu sua vista por um instante.
— Não — Sarah gritou e empurrou a mulher para longe.
A mulher deixou a lata cair, derramando a bebida que se transformou em uma poça marrom espumando no chão.
— Porra, sua maluca!
Sarah não deu atenção aos protestos da mulher, apenas se afastou cambaleando. Precisava seguir fugindo, escapar daquela voz. Os acontecimentos começavam a fazer sentido em sua cabeça. O experimento. Era isso. Ela havia se candidatado para um tratamento experimental e algo tinha dado errado. Mas, qual era o objetivo do tratamento?
Não se preocupem, nada do que irão experienciar é real. Estão em um ambiente cem por cento seguro.
Sarah parou por um instante. Um ambiente seguro. Claro, era uma simulação. Um flash de recordação piscou em sua mente. Ela se viu cumprimentando um homem de jaleco branco, lembrou de algumas palavras trocadas entre os dois: cura de fobias, neuro-estimulação, simulação de realidade, enfrentamento do medo.
As peças finalmente se encaixavam. Ela estava participando do estudo clandestino para superação de fobias quando algo deu errado. Lembrou-se de ter retirado os eletrodos de seu corpo quando um dos outros voluntários começou a gritar e se debater. Partículas de imagens de sua fuga do laboratório surgiram em sua mente. Sarah engoliu em seco, restava uma dúvida. Ela ainda estaria no tratamento? Se o estudo fazia uma simulação com a mais completa sensação de realidade, como ela iria diferenciar o que era ou não uma ilusão?
A música alta dificultava seu raciocínio. Sarah afundou os dedos nos ouvidos. Os blocos de carnaval não estavam proibidos naquele ano? Ela abanou a cabeça com um sorriso amargo. Sim, as comemorações carnavalescas em meio a pandemia eram clandestinas, assim como experimentos científicos em seres humanos. E, no entanto, ali estava ela, sem ter certeza se o que estava vivendo era real.
Vultos se aproximavam correndo. Sarah estreitou os olhos tentando focalizar e então percebeu; eles usavam jaleco branco. Sarah fora encontrada pelos cientistas. Por instinto, ela correu, embrenhando-se na multidão.
A marchinha tinha sido substituída por um samba enredo antigo.
— Liberdade, liberdade abra as asas sobre nós — as pessoas cantavam e dançavam alheias ao desespero da mulher que seguia se espremendo entre seus corpos suados.
Sarah sufocava com a dificuldade de cruzar o mar de foliões. Seus músculos se retesavam na tentativa inútil de evitar o contato físico. Por outro lado, sabia que estar rodeada de pessoas era o que a impedia de cair com a tontura que sentia.
A multidão se movia seguindo o carro de som e Sarah era arrastada junto. A música aumentando de volume à medida que ela avançava. A cada dois passos, ela olhava para trás em busca de seus perseguidores. Suas roupas brancas se destacavam entre as fantasias coloridas. Estavam se aproximando. Era uma questão de tempo para que a alcançassem.
Ainda olhando para trás, ela tropeçou na caixa de isopor de um vendedor ambulante de bebidas. Sarah ergueu as mãos num pedido de desculpas e, ao tentar se afastar, acabou se chocando com uma parede preta que estranhamente emitia uma vibração. Levou um instante para entender, não era uma parede e sim a lateral do caminhão que servia de trio elétrico.
Um átomo de esperança explodiu em sua mente. Sarah pôs-se a tatear a lateral escura em busca de uma abertura, um espaço onde pudesse se esconder. Quando seus dedos encontraram um vão, ela sorriu. Estava a salvo. Sem hesitar, Sarah escorregou o corpo para dentro da abertura.
A temperatura dentro do vão onde ela se escondera era tal que ela sentia que seu sangue poderia entrar em ebulição a qualquer momento. O volume a música era de enlouquecer, a estrutura vibrava fazendo que Sarah tremesse junto.
Ainda assim, ela estava determinada a permanecer no lugar pelo maior tempo possível. Não se deixaria capturar nem que seus tímpanos explodissem. Não se submeteria mais ao papel de rato de laboratório, nem permitiria que brincassem com seus medos. Seus temores mereciam ser respeitados, não seria objeto de estudo de ninguém.
***
A repórter esfregou o polegar nos dentes superiores para limpar a mancha de batom vermelho. Olhou para o cameraman que fez um gesto positivo. Ela sorriu aliviada, faltavam poucos segundos para iniciar a transmissão ao vivo e não teria tempo de procurar um espelho.
— A renomada neurocientista Sarah Avelar foi encontrada desacordada em seu laboratório essa manhã. Depois de sofrer sanções do Conselho Regional de Medicina, Sarah tentava provar sua inocência.
A acusação contra a cientista é de conduta imprudente e de realização de experimentos não autorizados em seres humanos. A investigação teve início com a denúncia de um grupo de antigos pacientes que relataram os diversos efeitos colaterais que tiveram após participar do experimento comandado pela doutora Sarah.
Segundo a denúncia, o tratamento de realidade virtual e drogas não apenas era ineficaz como levava ao surgimento de pesadelos e alucinações relacionadas às fobias que devia curar. O tratamento e o medo extremo por ele gerado foi apontado como a possível causa do suicídio de três dos antigos participantes do estudo.
Os médicos ainda não fizeram declarações sobre a condição de saúde da neurocientista, apenas informaram que ela se encontra em estado de coma.
A polícia por enquanto não liberou detalhes, mas foram encontrados sinais de arrombamento nas instalações do laboratório. Embora nada esteja confirmado, há a suspeita de que o invasor teria submetido a neurocientista ao mesmo tratamento que ela utilizava nos pacientes. Questionado a respeito da teoria, o delegado Brandão se recusou a dar detalhes.”
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Sarah estremeceu ao despertar, seu estômago se contraiu com o odor de urina.
Por THAÍS MESSORA