RECANTO DAS CULTURAS TRADICIONAIS – Círio de Nazaré

RECANTO DAS CULTURAS TRADICIONAIS – Círio de Nazaré

 

Procissão do Círio de Nazaré, em frente à Igreja Catedral de Nossa Senhora da Graça.
Crédito Cesar DuarteTYBA

 Nesta edição do RECANTO DAS FESTIVIDADES TRADICIONAIS vamos tratar do Círio de Nazaré, que em última análise é uma manifestação de fé e devoção à Nossa Senhora de Nazaré. A festa é realizada já há mais de dois séculos em Belém/PA.

 Foi aclamada e reconhecida como Patrimônio Cultural Imaterial pelo Iphan (no Brasil) e declarada Patrimônio Cultural da Humanidade pela UNESCO. Ou seja: tem garantia de representatividade histórico-cultural, e deveria ser motivo de orgulho para todos os brasileiros.

 Mas como foi que tudo começou? Bem, essa história começa em 1700 com o achado da Imagem de Nossa Senhora de Nazaré pelo Caboclo Plácido, às margens de um riacho próximo de onde hoje se ergue a Basílica Santuário de Nossa Senhora de Nazaré.

 A importância desse acontecimento foi imensa, e repercutiu quase que imediatamente. Assim, em 1793, ocorreu a primeira procissão em homenagem a essa que se tornou a padroeira dos paraenses. Desde então, a festividade acontece anualmente, e a cada ano congrega número maior de fiéis.

 O Círio ocorre faz parte do calendário anual durante outubro, juntamente com outras doze procissões, como a Trasladação, a Romaria Rodoviária, a Romaria Fluvial, o Círio das Crianças e o Recírio, dentre outras.

Milhares de pessoas acompanham o Círio de Nazaré no Pará
Crédito: Paulo Santos/ReutersArquivo

 Milhões de pessoas ocupam as ruas de Belém durante toda a quinzena festiva, que inclui também uma extensa programação de eventos: missas, vigílias de oração, o Arraial de Nazaré, o Círio Musical e a descida da Imagem do Achado, do Glória para o Altar da Basílica Santuário, onde fica durante os quinze dias de festa para visitação do povo.

 Existem versões diferentes sobre a origem dessa festividade, e os historiadores divergem sobre alguns detalhes, se baseando para isso tanto em documentos quanto na captura da oralidade.

 Sabe-se que, em 1653, os Jesuítas iniciaram a devoção a Nossa Senhora de Nazaré na localidade de Vigia de Nazaré, no Pará. Muito embora a origem seja atribuída àquele local, o Círio enquanto romaria foi instituído somente a partir da metade do século XIX, vários anos após o de Belém. Lá, Dom Frei João Evangelista transcreve em manuscrito, atribuído ao Convento de Santo Antônio dos Capuchos, em Portugal, sua conversa com Plácido José de Souza, sobre como teria sido encontrada a imagem de Nossa Senhora de Nazaré em 1700. O Prelado visitou a ermida de Plácido logo após sua chegada a Belém.

 De acordo com o documento histórico, a imagem foi encontrada ao final do mês de outubro sobre pedras lodosas, à margem de um córrego onde o gado se saciava. Plácido imaginou que a imagem poderia ser de algum peregrino em viagem para o Maranhão, já que os viajantes paravam ali para beber água. Também poderia ser de algum cristão que, surpreendido pelos índígenas, fugira ou morrera sem poder abrigar a estatueta.

 A choupana de Plácido, próxima ao ponto de água, era bastante procurada como pousada na estrada do Maranhão e por isso muitas pessoas conheciam a imagem, que começou a receber donativos. Ele lamentava não poder preparar um oratório mais decente, mas, em consonância com o relato: “O coração do humilde era o melhor abrigo para a Rainha dos Céus”. Coisa linda, não é mesmo?

 Em 1773 iniciou-se a construção da segunda ermida por Plácido, com a primeira pedra abençoada pelo padre.

 Conta-se que, após achar a imagem, que estaria com um manto, percebeu em sua parte interna uma inscrição onde se lia “Nossa Senhora de Nazaré do Desterro”. Ele a levou para casa e a colocou num pequeno altar de miriti, onde havia um crucifixo e outras imagens de santos de sua devoção. No dia seguinte, a imagem teria sumido. Ao retornar ao local do achado, percebeu que ela se encontrava no mesmo lugar do dia anterior. Fato ou fake? Em nome da fé, vou prosseguir como sendo fato.

 O mesmo processo teria se repetido durante vários dias, e a notícia do “desaparecimento” repetido obviamente se espalhou, provocando a intervenção das autoridades civis e eclesiásticas, fazendo com que a imagem fosse levada para o Palácio do Governo, para o Paço Episcopal e à recém-erguida Catedral, de onde ela também sumiu, sendo encontrada no mesmo local de sempre.

 Por conta dos desaparecimentos, Plácido teria entendido que a imagem deveria ficar no local onde fora encontrada e ali construiu uma ermida para abrigá-la. O local do achado é onde hoje se encontra a majestosa Basílica Santuário. Incrível!

 O milagre da “fuga da imagem indica que o lugar teria sido escolhido por Deus como local de manifestação de fé. A imagem é, por si só, a memória e representação da mãe de Jesus. A doutrina Católica ensina que não são as imagens que fazem milagres, mas sim Deus, que por intercessão de Maria, realiza o impossível.

 Conforme o tempo foi passando, diversos relatos de graças alcançadas por intercessão de Nossa Senhora de Nazaré foram sendo contabilizados.

 Grande parte dos pesquisadores atribui a origem da imagem a Portugal e trazida através dos rios, apoiando essa teoria em diversos fatores de contexto da época.

 Com o passar do tempo, a ermida erguida por Plácido já não comportava mais tantos devotos e assim, foram construídas mais duas ermidas e a matriz, sucessivamente, antes do lindo e grandioso que até hoje persiste.

 Nesses tempos , o local passou a ser conhecido como o “Arraial de Nazaré”. Em fevereiro de 1773, Dom Frei João Evangelista Pereira visitou o Arraial e resolveu enviar a imagem a Portugal para que fosse reformada, solicitando à Rainha, Dona Maria I, e ao Papa Pio VI, a licença oficial para a realização de uma festividade em honra de Nossa Senhora de Nazaré. O padre esperava que as obras da ermida já estivessem concluídas quando da volta da imagem.

 A imagem finalmente retornou a Belém no quarto domingo de outubro de 1774. Atendendo ao convite do bispo, a população e as irmandades compareceram ao porto, de onde uma procissão seguiu até a ermida. Já era noite e a caminhada aconteceu sob o luar, em meio à floresta.

 Dom Frei João Evangelista morreu antes que a resposta quanto à realização da festividade fosse enviada. Seu sucessor, Dom Frei Caetano Brandão, reforçou o pedido em 1788 e, finalmente em 1790, o Vaticano permitiu. Entretanto, a notícia chegou apenas dois anos depois, em um período de vacância no episcopado de Belém. Com a boa nova e o povo em fervor, todas as atenções estavam voltadas para Belém.

 Uma grande feira foi organizada, congregando toda a então capitania, com produtos agrícolas variados, marcada para ter início no dia 8 de setembro de 1793. Cada vila ou cidade precisaria contribuir com a exposição, havendo condução gratuita até Belém, com embarcações saindo de diversos lugares. Alguns navios trariam inclusive indígenas de várias etnias.

 Foram três meses de intensa preparação, até que a autoridade organizadora da festa adoeceu. Após estar curado, o capitão cumpriu sua promessa, com a celebração da missa e a realização de uma grande procissão, no dia 8 de setembro de 1793, sendo esse marco considerado como o primeiro Círio, contando com cerca de 10 mil pessoas. Na chegada à ermida foi celebrada outra missa, seguindo-se a bênção da pedra fundamental para a construção da terceira ermida, feita com pedras e cal.

 Por toda a semana foram realizadas ladainhas na ermida e a feira no arraial. Havia barracas de palha onde as pessoas poderiam comprar produtos regionais (frutas, animais vivos, carnes de caça, peixes, comidas típicas e utensílios diversos).

Litogravura raríssima usada no filme do Círio de 1868, do pintor italiano Joseph Léon Righini,
que morou em Belém entre 1865 e 1870 – FOTO: Divulgação

 O tempo passou, mas a festa não. Em 1861, foi fundada a Paróquia Nossa Senhora de Nazaré do Desterro, enquanto as obras da construção da matriz, em substituição à terceira ermida, seguiam lentamente. Iniciadas em 1852, duraram até 1881, mas a entrega aconteceu apenas em 1884, após a resolução da chamada “Questão Nazarena”.

 Em 1905, a Paróquia foi entregue à administração dos Clérigos Regulares de São Paulo (Barnabitas), que haviam chegado a Belém em 1903. Em 1908 chegou ao Pará o padre barnabita Luiz Zóia, que achou a matriz acanhada e sem estilo. Era pois necessário erguer um novo templo.

 Padre Zóia sugeriu a construção de uma nova igreja ao lado da antiga para não interromper o andamento das atividades religiosas. Propôs erguer uma réplica reduzida da Basílica de São Paulo Extra Muros, de Roma. O projeto foi inicialmente encomendado a um italiano que se dizia arquiteto, mas as plantas não foram aceitas pela Câmara Municipal, que interferiu no projeto original, incluindo as duas torres.

 O sacerdote esteve à frente pessoalmente durante quase 20 anos dos trabalhos de construção. A primeira pedra foi abençoada pelo Arcebispo de Belém à época, Dom Santiago Coutinho, em 24 de outubro de 1909. Nesse mesmo dia, foi apresentado o que é considerado o hino oficial do Círio, “Vós sois o lírio mimoso”.

 Em razão da escassez de recursos, as obras seguiram lentamente. Talvez por conta disso, cuidou-se em minúcia de cada um dos muitos detalhes da arquitetura. Tantos que torna-se impossível percebê-los em pouco tempo de visita.

 Em 1920, mesmo com as obras ainda em andamento, a imagem encontrada por Plácido foi trasladada da antiga matriz para o interior do novo templo. Três anos depois foi inaugurado o altar principal. Em 1923 foi concedido pelo papa Pio XI o título basilical, justificado pela importância do local para a devoção na Amazônia.

 Praticamente todo o templo foi erguido com partes pré-moldadas por diversas empresas da França, Itália e também do Brasil. Trazidas a Belém de navio, foram encaixadas milimetricamente nos seus lugares.

 Fazendo parte dos elementos que compõem o Círio de Nazaré, a Basílica integra o conjunto da declaração da festa como Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade pela da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), ocorrida em 2013.

 Em 1969, foi talhada a Imagem Peregrina, que até hoje segue nas 12 romarias e visitas oficiais. A imagem possui status de Chefe de Estado, conferido por uma lei estadual paraense.

 O Círio atualmente é considerado como a maior manifestação católica do planeta, atraindo mais de dois milhões de pessoas às ruas de Belém. Profusão de cultura, tradição e fé.

 A berlinda, onde a imagem é transportada durante as procissões, foi introduzida no Círio a partir de 1882. Até então, a imagem era conduzida no colo pelo capelão do Palácio do Governo, como era tradição desde o primeiro Círio, em um palanquim, uma espécie de liteira fechada presa a um varal levado no ombro por quatro ou seis homens, veículo comumente utilizado à época por pessoas abastadas e autoridades. A partir da utilização da berlinda, puxada por cavalos, a imagem passou a ser levada sozinha. Em 1885 foi introduzida a corda. No ano de 1926, entre as diversas mudanças sugeridas pelo então Arcebispo de Belém, a berlinda foi substituída por um andor e assim permaneceu até o Círio de 1930, quando retornou. A berlinda atual é a quinta da história. Foi confeccionada em 1964 e tem estilo barroco, feita em cedro vermelho. Conforme a tradição, é ornamentada com flores naturais para uso no Círio e na trasladação. Para as outras romarias oficiais, são utilizadas berlindas menores e mais simples, com exceção à Romaria das Crianças e à Procissão da Festa, quando é utilizado o nicho onde a imagem era colocada na Basílica. No Recírio a imagem é levada em um andor nos ombros. Em 2012, a berlinda passou por uma reestruturação, quando foi inserida uma nova cobertura de folhas de ouro. A reforma envolveu também a implantação de um moderno sistema de iluminação em fibra ótica, com luz branca no interior, representando a paz e a pureza de Nossa Senhora, e amarela na parte exterior realçando os detalhes da estrutura. Todos os anos, antes do Círio, a berlinda passa por pequenos reparos.

 A corda passou a fazer parte do Círio desde 1885, quando uma enchente da Baía do Guajará alagou a orla desde próximo ao Ver-o-Peso até as Mercês, no momento da procissão, fazendo com que a berlinda ficasse atolada e os cavalos não conseguissem puxá-la. Os animais então foram desatrelados e um comerciante local emprestou uma corda para que os fieis puxassem a berlinda. A partir daí, a corda foi introduzida no Círio e, ao longo de sua existência, foi alvo de diversas polêmicas. Atualmente é um dos maiores ícones da festa, utilizada na Trasladação e no Círio. Confeccionada em cisal torcido, possui 400 metros de comprimento (para cada uma das romarias) e duas polegadas de diâmetro. Até 2003, o formato da corda era de “U”, com as duas extremidades atreladas à berlinda. A partir de 2004, por motivos de segurança, a corda ganhou formato linear dividida em cinco estações confeccionadas em duralumínio que ajudam a dar tração à corda e ritmo às romarias. Em cada uma das estações há a presença constante dos chamados animadores da corda que têm a função de estimular os promesseiros por meio de palavras de ordem, cânticos e orações. Atualmente, o atrelamento à berlinda ocorre de forma planejada. Nota-se o esforço incansável da Diretoria do Círio e órgãos de segurança em fazer com que, especialmente no Círio, a corda chegue até seu destino final sem que seja cortada pelos próprios promesseiros. As campanhas de conscientização começaram em 2011 e são lançadas próximo ao Círio como forma de tentar fazer com que os objetos cortantes não mais sejam utilizados.

Corda do Círio de Nazaré – FOTO: Tarso Sarraf

 Uma das tradições mais antigas e conhecidas do Círio de Nazaré, adotada até hoje por várias famílias, empresas e órgãos paraenses: fixar cartazes do Círio nas portas, como forma de homenagem a Nossa Senhora de Nazaré. Isso se tornou um símbolo de evangelização e divulgação da festa. O primeiro Cartaz de divulgação do Círio foi confeccionado em Portugal no ano de 1826. Inicialmente as peças eram elaboradas à mão para impressão. Atualmente o Cartaz é produzido a partir de fotografias e tem a concepção elaborada por uma agência de publicidade voluntária.

 Os ex-votos (objetos de promessas) são elementos levados pelos devotos como sinal do agradecimento pelas graças recebidas pela intercessão de Nossa Senhora. Os mais comuns são em cera (como velas normais ou de metro e partes do corpo), além de tijolos, miniaturas de barcos e casas, réplicas da berlinda e de imagens de Nossa Senhora de Nazaré. Há também outros, bem mais inusitados, como livros, carros de brinquedos, cruzes e outros que demonstram a gratidão do povo. As formas de pagamento de promessa são muitas vezes curiosas e criativas, chamando a atenção nas romarias. Os ex-votos são depositados nos carros dos milagres ou num local especialmente destinado a eles na própria Basílica. As peças em cera são revendidas e a renda é revertida para os projetos sociais mantidos pelas Obras Sociais da Paróquia de Nazaré. Brinquedos e outros elementos são encaminhados para doação e os mais inusitados são repassados ao Museu do Círio e o Espaço Memória de Nazaré.

 Viva o Círio de Nazaré e até o próximo artigo dessa coluna que amo publicar, o RECANTO DAS FESTIVIDADES TRADICIONAIS!

Por EDUARDO MACIEL

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